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Lula sairá de cena?

A fórmula com a qual o terceiro mandato de Lula busca encarar o avanço da extrema-direita é a despolitização total da sociedade brasileira. Isto, em parte pelas suas próprias escolhas pragmáticas, que remetem à sua trajetória de ter como único princípio de alianças não ter quaisquer princípios, como falava certa feita certo adversário ideológico do petismo, convertido agora em seu eleitor (e pragmatismo não é realismo, na medida em que ele isola o benefício de curto prazo em relação aos desenvolvimentos futuros e à situação de conjunto, dando frequentemente como resultado aquilo que pretendia evitar); em parte, pela correlação de forças do Esgoto Nacional, que também atende pelo nome de Congresso, composto pelo pior enxurro da sociedade brasileira eleita no esteio do bolsonarismo.


Tomemos como exemplo a questão fundiária. Com efeito, mesmo a reforma agrária cosmética, com dados oficiais inflacionados por mera atualização cadastral, está estagnada: enquanto o governo federal promete assentar 326 mil famílias até o final de 2026, segundo o próprio MST assentou menos de duas mil famílias na atual gestão. Menos de duas mil! Não por acaso, os brasileiros sofrem com a inflação de alimentos, pois, como se sabe, são os pequenos produtores os principais fornecedores dos itens da cesta básica. Chega a ser paradoxal que, em nome da governabilidade, Lula transfira um quinhão enorme do orçamento para os latifundiários e favoreça com isso a concentração de terras e a depredação ambiental, o que dá como consequência um dos fatores que mais empurram sua avaliação para baixo, qual seja, o preço da comida. Para quem se elegeu com o slogan aparentemente desideologizado de “cervejinha e picanha” é realmente desmoralizante não entregar nem o café da manhã para a população.


Também se pode dizer o mesmo a respeito da composição com o dito “centrão”. Embora eleito com um discurso antagônico ao Orçamento Secreto, logo os assessores palacianos orientaram o governo a buscar uma negociação, inclusive, com desgaste perante o STF. O resultado direto disto foi a taxa de reeleição recorde dos prefeitos nas últimas eleições municipais (acima de 80%), menos relevante pelo fato em si do que por revelar o fortalecimento das máquinas políticas fundamentalmente de direita que emergiram sob Bolsonaro e continuaram a ser pesadamente financiadas sob o atual governo petista. Idêntico cálculo cabe ao roubo dos aposentados no INSS: se é certo que os descontos começaram sob o ex-futuro ditador, isto não anula a responsabilidade de Lupi & cia, porque sob eles os débitos se mantiveram e prosperaram. Tudo isso para quê? Para tentar comprar na cúpula um apoio que não vem de baixo, pela frustração das mínimas demandas populares. Esta parece ser a receita mesma do fracasso, pois qualquer pessoa que ande pelas ruas constatará facilmente o avanço do discurso de oposição à direita junto a antigos redutos anti-bolsonaristas, como a juventude e os mais pobres. Sensação confirmada pelos institutos de pesquisa, com tímidas estabilizações seguidas por quedas consistentes, a ponto de o atual governo ter, segundo pesquisa Quaest divulgada nesta quarta, 4,57% de rejeição.


Pesquisa Quaest.
Pesquisa Quaest.

Agora, tem razão quem diz que ninguém ganha ou perde uma eleição sozinho. Fosse elegível, Bolsonaro seria competitivo. Ocorre que, hoje, a principal tendência é que haja uma divisão neste campo, com o aparecimento de um candidato oficialmente ungido pelo “mito”, inclusive dentro do próprio clã, e algum outsider do tipo Pablo Marçal. Realmente, se se observa a nova extrema-direita mundo afora, ela tem uma linguagem claramente ultraliberal e, por incrível que pareça, civil: é em nome de valores como “democracia” e “liberdade” que ela se mobiliza – claro, “democracia” entendida como supressão das minorias, e “liberdade” entendida como direito ao individualismo extremo e recusa a qualquer solidariedade social. O fato de as forças armadas terem suas imagens desgastadas sob Bolsonaro como sob nenhuma outra gestão – e desgastadas inclusive para eleitores de Bolsonaro, que as consideram “melancias” –, torna improvável qualquer interferência direta delas na política partidária no curto prazo, reservando-se o papel de “árbitras” diante de crises mais graves futuras. Portanto, a possibilidade de que apareça no próximo pleito alguma coisa parecida com Javier Milei, concertando um discurso ultraliberal selvagem com um aparente cosmopolitismo cultural, é bastante realista. Não se trataria em absoluto de uma “terceira via”, mas de um aprofundamento da implosão das mediações institucionais clássicas, como também ocorre nos Estados Unidos sob Trump. Tarcísio de Freitas já ensaia algo neste sentido, enquanto a PM de São Paulo acumula torturas e assassinatos hediondos, mas, de um lado, ele dificilmente se lançará sem a benção de Bolsonaro (cenário que hoje parece no mínimo incerto) e de outro teria dificuldades em se apresentar, e também de se portar, na condição de governador de São Paulo, como um aventureiro antissistema.


Seja como for, nos últimos anos a política brasileira parece viver uma realidade completamente cindida: vários pequenos e grandes escândalos e revoltas palacianas; quase nenhuma repercussão disso na base da sociedade. Sob o governo Lula, os atos de rua de Bolsonaro minguaram, mas este espaço não foi ocupado pelos movimentos populares. Realmente, o descrédito das instituições é tamanho que as pessoas parecem ter simplesmente optado por se virar apesar delas, dando-lhes as costas como aquelas se lhes deram. Isto não significa apatia ou despolitização, porque como nunca as pessoas acompanham mesmo as minúcias do debate político e econômico, embora na sua forma estandardizada pelos cortes das redes sociais, terreno no qual, aliás, os setores mais reacionários têm larga vantagem sobre os demais, inclusive pela sua capacidade inigualável de mentir com convicção. Significa, sim, que o fosso entre a base social e as superestruturas políticas nunca foi tão grande, o que indica a continuidade da crise brasileira, até que ocorra um desfecho que só poderá ser radical, na forma de uma sublevação à direita ou à esquerda. A saída de cena desta figura que é Lula – seja por derrota eleitoral (e não se deve nunca subestimar o peso da máquina num país como o nosso), seja por impedimento físico – histórica na medida em que impediu até aqui exatamente a sublevação acima, tanto para um lado como para o outro, jogará um papel crucial para a explosão que se desenha como provável até o fim desta década. Isto explica por que vários ideólogos liberais o apoiam, mas não ao PT, e do seu ponto de vista isto realmente faz sentido.


Para os marxistas, ao contrário, quanto mais explícitas as contradições econômicas e sociais tanto melhor, o que nada tem a ver com deixar de lutar pelas melhorias das condições de vida dos trabalhadores. Ocorre que a consciência de classe só se desenvolve pelo conflito aberto contra interesses que lhe são antagônicos, interesses dos quais nasce uma contraposição generalizada numa série de campos como os valores e a visão de mundo. Basta ver, por exemplo, numa escala micro, as transformações que se produzem na consciência de pessoas ativas em uma greve ou mesmo em uma única manifestação importante. Quanto mais aberta a polarização entre o pequeno grupo de rentistas que nos governam (dos quais a extrema-direita é o porta-voz mais visceral) e a maioria da população trabalhadora, tanto mais rapidamente nos curaremos da chaga da extrema-direita com base popular. Mitigar este embate é dar aos nossos inimigos toda a água turva de que eles precisam para prosperar, e é por isso que um governo como o de Lula é completamente incapaz de derrotar este tipo de oposição de extrema-direita. Não é sobre convencimento, é sobre o embate sem o qual não é possível nenhuma mobilização efetiva e portanto nenhuma verdadeira ação política independente.

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