Caso MC Poze: pode-se defender o artista, sem aderir à sua arte
- Igor Mendes
- há 4 horas
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São absurdas as imagens do MC Poze do Rodo (nome artístico de Marlon) tratado como um troféu por policiais da Delegacia de Repressão aos Entorpecentes (DRE) da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Proibido sequer de vestir um chinelo e uma camisa, obrigado a manter a cabeça abaixada sob a coação de um agente, havia ali mais do que um eco, havia ali uma manifestação inequívoca das raízes escravistas de nossa história. O Delegado, sedento de fama, declarou que as canções de Poze são “mais perigosas do que um tiro de fuzil”, embora não conste que tenha sido necessário mobilizar helicópteros ou Caveirões para prendê-lo; hoje, a imprensa noticia com estardalhaço que ele solicitou, ao entrar no sistema penitenciário, preferir ficar entre os faccionados do Comando Vermelho. Somente pessoas que não entendem, ou propositadamente não querem entender como funciona o sistema penitenciário, podem ver nisso confissão de culpa: o próprio fato de a imprensa criar enorme estardalhaço, identificando Poze com o Comando Vermelho, independentemente de qualquer mérito, colocaria sua vida em risco caso ele fosse instalado em qualquer outro lugar. Também pesa nesta escolha, não no caso dele especificamente, mas no de muitos pobres anônimos enviados para tais masmorras, o simples local onde vivem: ainda que não tenham nenhum envolvimento com o “movimento”, é prudente respeitar a geografia da criminalidade. Como quase tudo o que envolve essa máquina policial-judiciária-penal de moer gente pobre e preta, trata-se de uma escolha de quem não tem escolhas.
A criminalização do “Funk”, inclusive do chamado “Proibidão”, é mais um capítulo da criminalização e estigma da cultura negra em geral, como foi a capoeira – cuja prática em público foi proibida no primeiro código penal republicano –, o samba – associado à “vadiagem” pelos militares –, os terreiros de religiões de matriz africana –inclusive atualmente no interior de várias favelas, pela ação de criminosos identificados com o pentecostalismo. Dizer o que é ou não é arte não é, por certo, tarefa de um juiz ou de um delegado de polícia, porque isto seria simplesmente um estado absoluto de arbítrio. A própria categoria de “apologia ao crime”, extremamente subjetiva, não passa de um capítulo autoritário do Código Penal, que viabiliza o crime de opinião, cuja avaliação dependerá (como tudo no Direito) menos do ato praticado do que do sujeito: um jornalista branco que defenda, numa emissora que se vale de uma concessão pública, o “escracho” ou mesmo o cancelamento do CPF de “suspeitos” pretos e periféricos estará abrigado pela liberdade de expressão; um artista funkeiro que retrate nas suas músicas a sua realidade – atroz, é certo, mas ainda assim realidade e universo imaginário a ela associado –será acusado de promover o tráfico. Como bem diz o jurista e ex-governador do Rio, Nilo Batista:
Os jovens MCs das favelas cariocas, criminalizados por cantar algum ‘proibidão’, encontram-se em singular posição: podem cantar sua aldeia desde que omitam personagens que nela realmente viveram sua (geralmente curta) vida e episódios que nela, ou a partir dela, realmente aconteceram. Como compatibilizar essa interdição com as amplas franquias que a Constituição deferiu à criação artística?¹
Com efeito, e isto é bastante importante, o MC, seja letrista ou intérprete, vocaliza um eu-lírico, ainda quando narra suas experiência pessoais, porque há uma distância mesmo entre a mais realista das expressões artísticas e a realidade mesma. Outrossim, tal delito da pena de apologia, com pena prevista de três a seis meses de detenção e multa, ou seja, de menor potencial ofensivo, não justificaria nem a prisão preventiva e muito menos o “esculacho” público de Poze. Alguém conceberia a possibilidade de o general Braga Netto, acusado de crimes cujas somas, se condenado, acumularão décadas, ser apresentado na porta da sua residência sem camisa, como presa da luxúria vingativa de modernos capitães do mato? Seria possível a ocorrência de semelhante imagem?
Absurdo, repugnante, inaceitável.
Por óbvio, a defesa da liberdade artística não se confunde com a defesa do conteúdo artístico propriamente dito. Infelizmente, há bastante confusão aqui. Cheguei a ler postagens hoje dizendo que a diferença entre MC Poze e os ícones da música popular brasileira que lutaram contra o regime militar é a cor da pele e o endereço. Isso nem é objetivamente correto: vastos setores de trabalhadores se engajaram na luta contra os militares, e do seu seio nasceram artistas como Zé Ketti, Milton Nascimento, Gilberto Gil, negros e de origem popular. Eles não promoviam nenhuma espécie de escapismo ou advogavam uma saída individual para as mazelas sociais–por exemplo, não escreveram canções sobre contar maços de dinheiro no exílio –, mas vocalizaram as aspirações de emancipação do nosso povo amordaçado. Pretender classificar como “elitista” uma cultura de protesto seria um erro grosseiro, como classificar como cultura de protesto toda e qualquer manifestação que venha da periferia. Se assim fosse, a revolução estava feita, não careceríamos de gastar as nossas vidas neste incessante esforço de mobilização política.
MC Poze, nas suas letras, glorifica um mundo de ostentação, no qual os mais fortes vencem, e onde há pouco ou nenhum espaço para formas de solidariedade coletiva. Na letra de uma canção chamada “Lobo”, ele canta:
Seja como um lobo
Já que conhece os perigos da selva e se mantém no topo
Pense como um lobo, faro aguçado
Percebe quem é da alcateia ou quem merece fogo
Se encostar no meu pit a bala voa
Fique rica, a vida é curta, meus irmãos fedendo a ouro
Sem dúvida, o capitalismo selvagem de nossos dias faz do mundo uma grande selva e é contra esta selva ( “o homem é o lobo do homem”) que nós socialistas sempre lutamos. Pretender que qualquer pessoa possa se tornar também um lobo é o sonho ideológico mais ventilado pelo neoliberalismo insano de nossos dias. O fato de que MC Poze, rico e bem sucedido, esteja ele próprio neste momento encarcerado em uma cela de Bangu, prova a velha máxima de que nenhum homem é uma ilha e que é um equívoco a “saída individual”.
Na música “Vida Louca”, diz:
Pique o Lanterna Verde pra nóis embrazar
Chama essas danada que tão doida pra sentar
Uh-la-la, patricinha vem da pista pra sarrar no AK
Vida de artista, todas elas quer me dar
É o Poze do Rodo, Lacoste no peito
Sempre posturado, com o bolso cheio de dinheiro
Posso fazer nada, vivo a vida desse jeito
Arrasta pra cima que eu vou te contar um segredo
O eu-lírico é feliz de ter escapado da sua situação inicial, mas reproduz a mesma relação de opressão desenfreada diante das mulheres, tidas como um objeto que se compra por dinheiro. Além disso, quantas pessoas da favela podem se dar ao luxo de levar semelhante vida? MC Poze é realista na medida em que ele retrata nas suas letras o universo psíquico da maioria dos jovens pobres de hoje, ou seja, ele retrata precisamente as suas ilusões. Neste sentido, e agora eu serei polêmico, ele não é um representante típico das favelas, mas da sua aristocracia, que troca tempo de vida por dinheiro. A expressão típica destes aglomerados proletários está muito mais relacionada à luta cotidiana pela sobrevivência, aliás, bem menos apreciada enquanto tema artístico pelas classes médias do que o elemento transgressor-marginal. Fazer de MC Poze um ícone da resistência seria simplesmente emprestar às suas manifestações algo que elas não têm, ao menos por enquanto. Tomara que, após o périplo penitenciário, ele incorpore esta dimensão crítica às suas letras, o que sem dúvida nenhuma enriqueceria a sua arte. Que ele esteja livre o quanto antes para fazê-lo!
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¹“Sobre a criminalização do funk carioca”, Criminologia de cordel, v.2, editora Revan.