Irã: conheça a rica tradição comunista do país - Pt. 2
- Paulo André Casanova
- 24 de jun.
- 8 min de leitura
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Segunda parte: A Revolução de 1979 e os seus desdobramentos
É este o cenário em que se desenvolve a Revolução Iraniana de 1979. Em razão das contradições produzidas pela “Revolução Branca”, o radicalismo político se difunde entre as diversas frações da pequena burguesia, assim como entre a ulama. O fortalecimento da ação do aparelho repressivo do Estado sobre as esquerda secular “comunista” (a Frente Nacional e o Partido Tudeh, por um lado, e as GFPI, por outro), uma orientação expressa do imperialismo durante o período da Guerra Fria, favoreceu diretamente a atividade e o crescimento do chamado “islã político”. Neste contexto, são gestadas as tendências ideológicas que dominaram a Revolução Iraniana e que tomavam forma na tese de sua caracterização como uma “Revolução Islâmica”. Estas tendências chegavam a ser bastante heterogêneas em sua orientação política e se exprimiam pela oposição entre as figuras de Ali Shariati e do aiatolá Ruhollah Khomeini.
De posição progressista, Shariati foi assassinado em 1977. Buscava articular o socialismo e o islã, produzindo uma formação ideológica análoga à teologia da libertação, se referindo a sua posição como um “xiismo vermelho”(1). Esta ideologia orientou, sobretudo, a OMPI. Ainda que de posição anticapitalista, Shariati recusava o marxismo, seu “xiismo vermelho” sendo uma forma de socialismo utópico pequeno-burguês. Ela era, no entanto, a tendência ideológica predominante no período inicial da Revolução Iraniana, dando a ela elementos progressistas. Khomeini, em diversos sentidos, assume uma posição diametralmente oposta. Líder religioso de grande popularidade, o aiatolá elabora uma versão reacionária da teologia muçulmana, voltada principalmente para a mobilização da ulama e para a construção de uma teocracia. Se a tendência de Shariati era predominante, a de Khomeini estava muito próxima, contando com uma ampla rede de organizações de massas corporativas. Khomeini afirmava que os sacerdotes xiitas deveriam dirigir diretamente as funções de Estado, sendo responsáveis pelo governo de toda a população muçulmana. Esta orientação teocrática era, no entanto, claramente antimonárquica, se opondo diretamente à soberania do Xá(2) e denunciando seu alinhamento com o imperialismo europeu e estadunidense. Seu lema central era o retorno à utopia de uma comunidade muçulmana originária, que combinava um igualitarismo dos fiéis e o governo dos sacerdotes. A ideologia de Khomeini era aparentemente eclética, buscando a construção de uma “terceira via”, nem capitalista, nem socialista (e, nas palavras do próprio aiatolá, nem feudal), apelando também diretamente aos camponeses sem terra. Por suposto, a ideologia de Khomeini era visceralmente anticomunista. Formações ideológicas análogas não são estranhas aos militantes antifascistas, ainda que com importantes diferenças (a ideologia de Khomeini apela mais à teologia política do que ao nacionalismo estrito, por exemplo).
Seja como for, as contradições impulsionadas pela “Revolução Branca” levam diretamente à Revolução Iraniana de 1979. Com o acirramento dos conflitos armados, greves e manifestações de massas, o Xá e seus ministros mais próximos são forçados a fugir do país. O exército, com comando fortemente centralizado na figura do Xá, é momentaneamente paralisado. Em fevereiro as GFPI derrotam a Guarda Imperial. A burocracia estatal, de composição basicamente pequeno-burguesa, se alinha à Revolução. A fuga do Xá, no entanto, não é espontânea. Na Conferência de Guadalupe, em 1979, os Estados capitalistas de EUA, França, Inglaterra e Alemanha Ocidental determinam que o Xá se retire do Irã em razão da radicalização política crescente e da possibilidade da formação de um governo socialista independente. Khomeini era visto pelas potências imperialistas como uma opção pragmática viável, sobretudo em função de suas posições anticomunistas.
De acordo com Kambiz Fattahi, em matéria publicada pela BBC em 2016(3), a imagem pública de confronto entre Khomeini e os EUA era, inicialmente, apenas uma aparência superficial. De acordo com Fattahi, documentos secretos da CIA, então recém publicados, comprovavam que, buscando evitar o risco de uma radicalização da Revolução Iraniana, o imperialismo estadunidense estabelece um acordo de estabilização com Khomeini no ano de 1979. As forças armadas iranianas, armadas e orientadas pelo imperialismo dos EUA, se comprometeriam apoiar Khomeini e abandonar qualquer pretensão de restauração da monarquia. Em troca, Khomeini usaria sua grande popularidade e a repressão para conter a Revolução Iraniana e garantir os interesses econômicos do imperialismo, se comprometendo também a não exportar a revolução e a manter uma posição de “neutralidade” antissoviética, além de reprimir as forças de esquerda que participaram da revolução. Se Khomeini parecia menos confiável do que o Xá, sua busca por se mostrar diplomático e amigável com o imperialismo estadunidense, no entanto, tinha uma longa trajetória, como sugere sua mensagem ao governo dos EUA 1963, ano em que já se procurava se mostrar como uma força próxima(4).
Com a deposição do Xá, as forças políticas dominantes na Revolução Iraniana rapidamente buscam organizar um novo processo constituinte. Um referendo é realizado, perguntando à população se aprovava a formação de uma “República Islâmica”. A proposta das forças institucionais nacionalistas, lideradas por Mosaddegh, de incluir a opção por uma “República Democrática Islâmica” é recusada por uma manobra de Khomeini, se apoiando na burocracia, nos militares e em sua rede de organizações de massas(5). Em uma formação social em que o islã aparecia simultaneamente como a ideologia predominante entre as massas e como o símbolo comum da resistência anti-imperialista, o resultado foi em 99% favorável. Rapidamente, Khomeini mobiliza suas forças para realizar eleições para uma assembleia constituinte. As eleições foram organizadas e controladas por seu Comitê Central de mobilização popular, pelo Ofício da Mesquita Central e pela Sociedade dos Sacerdotes militantes de Teerã, com o apoio da burocracia estatal e das forças armadas. Por suposto, a assembleia constituinte era amplamente dominada pelos aliados de Khomeini, com uma pequena participação dos nacionalistas laicos. A constituição o nomeava “líder supremo” da República Islâmica, com autoridade soberana para supervisar o funcionamento do Estado, “determinar os interesses do islã”, “estabelecer as orientações gerais da República Islâmica” e “mediar entre executivo, legislativo e judiciário”, além de o designar como comandante-em-chefe das forças armadas e responsável por nomear a suprema corte e o promotor geral, além de poder vetar qualquer candidatura aos cargos eletivos do Estado(6).
Neste ponto, a Revolução Iraniana apresenta uma dura lição. Se orientando pela pelo programa aparentemente anti-imperialista do movimento de Khomeini e por sua base social pequeno-burguesa (portanto, uma força social revolucionária), a Frente Nacional de Mosaddegh, o Partido Tudeh, a OMPI e mesmo uma fração majoritária das GFPI buscaram se alinhar ao novo aparelho de Estado, ainda que com o objetivo de constituir uma oposição institucional. O objetivo era a construção de um governo de frente popular anti-imperialista capaz de fazer avançar a libertação nacional e a independência econômica iranianas. No entanto, uma vez consolidado o processo constituinte e a formação de novos aparelhos de Estado, Khomeini começa um operação de divisão e destruição das forças de esquerda. Inicialmente, a OMPI e as GFPI são traídas e atacadas diretamente pelas forças armadas, levando à morte e ao exílio de grande parte de seus membros em uma luta que beira à explosão de uma guerra civil em 1981. Logo depois, os nacionalistas, que haviam buscado se enquadrar ao regime, são presos e processados. Por fim, a força política que mais havia tentado se enquadrar como uma oposição institucional, o Partido Tudeh, é praticamente destruído em 1983.
A rigor, é preciso compreender que, no contexto do imperialismo, a única possibilidade do estabelecimento consequente de uma frente anti-imperialista é a hegemonia ideológica do proletariado e sua independência política e organizativa no interior desta frente. Além disso, é necessário compreender que esta frente só faz sentido na estratégia comunista na medida em que cria as condições para o fortalecimento da revolução proletária. Neste sentido, o movimento comunista iraniano deveria ter se lembrado claramente das teses de Lênin sobres as questões nacional e colonial:
“No que se refere aos Estados e nações mais atrasados, onde predominam as relações feudais ou patriarcais e patriarcais-camponesas, é necessário ter em vista em particular: 1º. A necessidade de que todos os partidos comunistas ajudem o movimento libertador democrático-burguês nesses países; o dever de prestar a ajuda mais ativa incumbe, em primeiro lugar, aos operários do país do qual a nação atrasada depende nos aspectos colonial e financeiro; 2º. A necessidade de lutar contra o clero e outros elementos reacionários e medievais que têm influência nos países atrasados; 3º. A necessidade de lutar contra o pan-islamismo e outras tendências semelhantes, que procuram combinar o movimento libertador contra o imperialismo europeu e americano com o fortalecimento das posições dos kahns, dos latifundiários, dos mulás etc.”(7)
Apesar de sua retórica eclética, o programa econômico de Khomeini consistia em uma reorganização do desenvolvimento do capitalismo monopolista no Irã. Uma fração da pequena-burguesia ligada ao comércio foi organizada em trustes de comerciantes favorecidos pelo regime para controlar o comércio internacional. Khomeini enfatizou que o islã considerava a propriedade privada sagrada e que o setor privado teria um papel especial na economia. Em 1981 declarou que as autoridades deveriam respeitar “as posses móveis e imóveis, incluindo casas, lojas, oficinas, fazendas e fábricas”. Em seu testamento, afirmava que as futuras gerações deveriam continuar a respeitar a propriedade privada e que a liberdade de empreender é o principal fundamento econômico, escrevendo que “o islã difere gravemente do comunismo. Enquanto nós respeitamos a propriedade privada, o comunismo defende o compartilhamento de todas as coisas – inclusive esposas e homossexuais”(8). O atual “líder supremo” do Irã, o aiatolá Khamenei, segue a mesma linha, afirmando que são “os socialistas, não os muçulmanos, que associam as empresas com roubo, corrupção, ganância e exploração”(9).
A reforma agrária foi aprofundada no modelo capitalista, ampliando a margem de proprietários privados agrícolas e buscando a organização de cooperativas rurais. O novo aparelho de Estado passou legislações para estabelecer um conjunto de direitos ao proletariado fabril ao mesmo tempo em que proibia praticamente a organização sindical. Ainda que a dependência da exportação de petróleo não tenha sido superada, o regime de Khomeini passa a lutar por preços mais vantajosos nas relações com o imperialismo, canalizando majoritariamente os lucros da venda do petróleo para o financiamento de um complexo industrial-militar relativamente autônomo.
A atual República Islâmica do Irã é resultado deste processo. O movimento de Khomeini, de orientação reacionária, se tornou uma forma de renegociação da posição do capitalismo dependente iraniano na divisão internacional do trabalho. Esta renegociação dependeu, como moeda de troca, do compromisso anticomunista de Khomeini e do conjunto da ulama. Este compromisso se manteve, ainda que, em função das disputas em torno do preço de exportação do petróleo, o regime iraniano tenha se isolado progressivamente do imperialismo estadunidense. É este isolamento que, amplamente agravado pela crise e estagnação do desenvolvimento do capitalismo ianque, levou à atual situação da formação social iraniana e às sanções econômicas impostas pelos EUA e seus aliados. No limite, é esta disputa pelo controle econômico das reservas de matérias primas da região que condiciona o atual conflito entre o Estado fascista de Israel e a República Islâmica do Irã. Evidentemente, o atual conflito é uma guerra de agressão do supremacismo sionista contra o Irã, na tentativa de expandir suas fronteiras, reorganizar politicamente a região e alimentar o complexo industrial-militar estadunidense. Isto não pode impedir, no entanto, uma análise correta do conteúdo de classe da República Islâmica do Irã. Ela é uma potência capitalista regional baseada na opressão e na exploração das massas iranianas, assim como das nações minoritárias no interior de suas fronteiras jurídicas. Enquanto, inicialmente, dependia do apoio do imperialismo estadunidense e europeu, o capitalismo iraniano tem se deslocado tendencialmente para se tornar uma nova colônia do social-imperialismo chinês e de seus aliados russos. Não é possível, portanto, afirmar que se trata de uma força essencialmente anti-imperialista (o que não impede, bem entendido, que na atual situação mundial o Estado iraniano assuma uma função importante na resistência aos interesses imperialistas dos Estados Unidos).
A derrota das forças revolucionárias iranianas, no entanto, não é e nem pode ser definitiva. É evidente que a tarefa das organizações revolucionárias iranianas e das minorias nacionais neste momento é a defesa independente contra a guerra de agressão estadunidense-sionista. Esta tarefa deve estar articulada, contudo, à estratégia de construir as condições para uma coesão revolucionária capaz de derrotar tanto o regime dos aiatolás, quanto o imperialismo, a fim de realizar uma nova e verdadeira Revolução Iraniana.
NOTAS
1. ABRAHAMIAN, Ervard. History of Modern Iran, p. 211.
2. Id. p. 213-214.
3. Disponível em https://www.bbc.com/news/world-us-canada-36431160. Consultado em 20/06/2025.
4. Em sua autobiografia, Mohammad Reza Xá afirma que a popularidade politica de Khomeini começa a aumentar no ano de 1963 com o apoio de agentes dos EUA. Evidentemente, estas acusações são duvidosas, mas é curioso que coincidam parcialmente com os documentos revelados em 2016. Ver PAHLAVI, Mohammed Reza. Answer to History, p. 104. Nova York: Stein and Day. 1979
5. ABRAHAMIAN, Ervard. History of Modern Iran, p. 228.
6. Id. p. 229-230.
7. LÊNIN, V.I. “Teses para o II Congresso da Internacional Comunista” in Obras escolhidas, vol. 3, p. 354-355.
8. Id. p. 242.
9. Id. p. 243.