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“O campesinato não desapareceu, ele continua a existir e continuará existindo” - Ariovaldo Umbelino e a atualidade da luta pela terra no Brasil

A morte do geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, no último dia 2, aos 78 anos, é uma perda irreparável não apenas para a disciplina como para todos aqueles interessados nos destinos da luta pela terra no Brasil. Ao longo de toda a sua vida, Ariovaldo atuou como um legítimo intelectual comprometido com os destinos do nosso povo, particularmente o campesinato. Longe de ser um dos tantos marxistas de cátedra, fundiu como poucos a investigação científica com a prática política. Este compromisso o levou a criticar inclusive companheiros de militância de outrora, como a direção do MST, que chegou a declarar que a luta pela terra estava superada no país; e os intelectuais amestrados que, após a eleição de Lula, se locupletaram à frente do INCRA e do Ministério do Desenvolvimento Agrário, vendendo o direito sagrado à terra e a luta contra o latifúndio por migalhas restantes do banquete institucional. Além da polêmica pública, pela qual sofreu perseguições e teve seus textos proscritos em certos círculos, Ariovaldo aportou para a teoria geográfica brasileira, com seus estudos sobre metodologia científica, geografia e materialismo dialético e a formação territorial brasileira. Se sua perda, por um lado, deixa uma lacuna no nosso pensamento social, por outro, convoca e encoraja os estudantes e professores das novas gerações a agarrarem firmemente nas mãos a bandeira da luta pela erradicação do latifúndio, por ele sustentada de modo inabalável durante décadas. Como homenagem, brindamos nossos leitores com a publicação da longa entrevista do professor Ariovaldo realizada em 16 de novembro de 2011 na USP e publicada na Revista “Estudos Geográficos”, de Rio Claro, na qual ele aborda temas teóricos de grande interesse e atualidade para a questão agrário-camponesa no Brasil.


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Entrevista com o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira


por Thiago Sebastiano de Melo¹


TSM: Bom, professor, eu queria que o professor falasse como se construiu a sua trajetória de estudos sobre a questão agrária e especificamente sobre os assentamentos de reforma agrária.


AUO: Bem, foi uma opção que eu fiz na universidade, quando eu ingressei na década de 80, em função de uma opção pessoal; que eu tinha estudado na minha tese de doutorado a teoria de Von Thünen aplicada à agricultura e, na realidade, dei prosseguimento. O estudo dos assentamentos veio por conta do surgimento desse processo de luta do campesinato brasileiro, que redundou em ações organizadas através de processos de ocupações e acampamentos, e que foram desembocar na origem do próprio MST [Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Não é? As ações de ocupações de terras não começam com o MST, elas são anteriores ao MST. No caso aqui de São Paulo, o movimento de ocupação iniciou-se na fazenda aqui em Sumaré, próximo a Campinas, com o surgimento do movimento de sem terra de Sumaré, que fizeram a primeira ocupação em 1982, portanto, dois anos antes de se originar o MST. O Bernardo Mançano Fernandes, nos seus trabalhos de mestrado e doutorado em que ele analisa a história do MST, ele coloca a origem lá na fazenda em Andradina, como tendo sido a origem do MST em São Paulo. Mas na realidade a luta em Andradina é uma luta anterior à existência de ações organizadas em São Paulo, e evidentemente não há uma ligação orgânica entre a luta de Andradina e a origem do MST em São Paulo. Eu penso que a origem mesmo está em Sumaré, no Movimento de Sem Terra de Sumaré, que fez varias ocupações e que teve papel importantíssimo na década de 80 e 90, e até hoje ainda tem ações, embora eles na década de 90 deixaram de estar organicamente ligados ao MST.


TSM: Qual o panorama da questão agrária atualmente para o senhor?


AUO: Olha, nós vivemos num momento curioso, porque se nós tomarmos a década de 80 e 90 como pico de ações dos movimentos sociais, de surgimento dos movimentos sociais, a expansão da sua ação política pelo Brasil todo; o MST se organizou em grande parte dos estados brasileiros, e com a Via Campesina, toda ação organizada dos camponeses brasileiros através da luta pela terra e pela reforma agrária, nós vamos verificar que na primeira década do século atual, ou seja, já agora nos anos 2000, nós vamos viver um momento diferente, não é? Num primeiro momento, em 2003, com a eleição do Lula e com a elaboração de um segundo Plano Nacional de Reforma Agrária, existiu um pico de ações políticas no sentido de ampliação das ocupações e dos acampamentos, mas depois há um decréscimo dessas ações políticas, e o mandato do Lula vai terminar com os dois últimos anos, na realidade, com pouquíssimas ações por parte dos movimentos sociais e dos movimentos sindicais; meio como consequência do fato de que no primeiro mandato, o governo Lula não cumpriu as metas do segundo Plano Nacional. Das 400 mil famílias novas eles assentou algo em torno de 150 mil famílias, mas anunciou publicamente que assentou 600 mil, o que não corresponde à verdade. Tratou-se de reconhecimentos de assentamentos antigos e de regularização fundiária, o que não pode ser classificado como reforma agrária. Reforma agrária ela só existe se tiver desapropriação de terras, se tiver compra nas áreas onde não há como desapropriar, mas não foi isso que aconteceu, não é? Os números apresentados pelo INCRA [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], infelizmente, referem-se às relações de beneficiários, e beneficiários são todos aqueles que têm seus direitos reconhecidos, inclusive os assentados antigos. Então, foram 150 mil famílias assentadas, o que mostra que a reforma agrária no primeiro mandato não foi feita. No segundo mandato, o governo não elaborou o terceiro Plano Nacional, como manda o estatuto da terra em vigor; e também ninguém reclamou, nem os movimentos sociais, nem os movimentos sindicais, e o governo passou a fazer a contrarreforma agrária, através das medidas provisórias 422 e 458 que destinam terras do INCRA na Amazônia Legal para os grileiros. Numa extensão territorial de cada área grilada de até 1500 ha (mil e quinhentos hectares). Então, na realidade, o segundo mandato, foi o mandato da contrarreforma agrária. Por conseguinte, como os movimentos sociais e sindicais não reagiram a essa contrarreforma agrária, o que que aconteceu? Os posseiros voltaram à luta. Ou seja, em 2009 e 2010 aumenta a luta dos posseiros; essa luta individual, familiar, que normalmente leva ao aumento da barbárie. Por isso o aumento dos assassinatos no campo; por isso o aumento da violência no campo em 2009 e em 2010. E na contramão desse aumento dos conflitos pelos posseiros, pelos indígenas, pelos quilombolas, nós vamos ter o recuo das ações dos movimentos sociais organizados.


TSM: O professor já até entrou nisso um pouco... Fale sobre como avalia a atual política agrária, e no contexto histórico, se ela avança ao que havia na última década do século passado ou não.


AUO: Não! Nós vivemos num momento de retrocesso absoluto do ponto de vista da questão agrária brasileira. Porque uma parte dos intelectuais não quer a reforma agrária; entendem que a reforma agrária é a-histórica, a luta pela reforma agrária é a-histórica. Do outro lado, nós temos os movimentos sociais e sindicais que também já não lutam mais pela reforma agrária de forma decisiva. Basta olhar os dados da CPT [Comissão Pastoral da Terra] e verificar que o número de famílias novas acampadas não passou de duas mil famílias o ano passado, em 2010. E evidentemente, essa ação é parte de uma decisão política dos movimentos sociais, que decidiram que a luta pela terra não tem importância nenhuma; a importância maior está na luta por uma reforma agrária que eles chamam de popular, e que na realidade não é uma reforma agrária, é uma revolução o que se prega, e, portanto, a ênfase na luta contra o capital. E é por isso que os movimentos sociais deixam de fazer a luta pela terra e passam fazer a luta contra o agronegócio e consequentemente contra o capital, não é? Não se trata de achar correto ou não correto a opção que eles estão fazendo. Na realidade são eles que terão que explicar à sociedade a mudança na sua orientação política. A nós na universidade cabe os estudos. Bem, mas se nós olharmos o programa de governo da Dilma, no plano de governo da Dilma não há reforma agrária. Não há nada de reforma agrária! A única coisa que ela apresentou à sociedade foi um plano de combate à pobreza extrema. E a pobreza extrema, que na realidade são os miseráveis, o combate à situação de miserabilidade que uma parte dos brasileiros ainda vive, é um programa que tem uma contradição cruel, ou seja, 46% dos miseráveis moram no campo e no nordeste, e não se fala em reforma agrária. Para mim, que estudo a questão agrária há tanto tempo, não entendo como se pode fazer o combate à miséria extrema se não se faz a reforma agrária nesse país. Então, o governo também não quer fazer a reforma agrária. Então, na realidade, nós vivemos uma situação onde se tem a impressão de que a reforma agrária não é mais necessária. Entretanto, nós temos a Constituição brasileira que reza que a terra tem que cumprir a função social, e a terra não está cumprindo a função social. E o Estado brasileiro não cumpre a Constituição quando ele não faz a reforma agrária, ou seja, quando ele não desapropria as terras que não cumprem a função social. Então, é evidente que há uma grande contradição nesse momento histórico. Ou seja, a reforma agrária ela tem que existir, ela deve existir, e, entretanto, não há pressão social, e sequer o Estado brasileiro está preocupado em levá-la adiante. Mas é óbvio que o Ministério Público está movendo ações na justiça, de modo a arguir essa situação de descumprimento constitucional por parte do governo atual.


TSM: Então, diante disso, quais os principais entraves e desafios do governo e do movimento social nesse cenário que o senhor traça?


AUO: Na realidade, o movimento social ele fez uma opção política que não é mais da luta pela terra, não é? Ele fez uma opção política de luta contra o capital e, consequentemente, ele está derivando as suas ações da luta contra o capital. Se pegarmos as últimas ações do mês de agosto agora [2011], a maior parte das ações foram manifestações políticas de ocupação de prédios públicos, de ocupação de unidades do agronegócio, etc., não é? Foram pouquíssimas as ações de ocupação de terra que redundaram em acampamentos, como na história recente se via no Brasil. O movimento sindical também não tem realizado ações de ocupações de terras. Então, na realidade, se não tem pressão social, não tem mobilização por parte do governo. Mesmo porque, o governo só tem se mobilizado nos últimos 30 anos, quando houve pressão social, já que a reforma agrária, exceto quando se elaborou o segundo Plano no primeiro mandato do Lula, e no mandato do Sarney, quando se fez o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária, exceto nesses dois momentos, a reforma agrária foi uma política pública realizada por parte do Estado. Mas eu insisto, na realidade há a necessidade de se fazer cumprir a Constituição brasileira no que se refere ao cumprimento da função social. E o cumprimento da função social da propriedade privada da terra no Brasil, ela depende de quatro itens: um é a produtividade; e o INCRA tem mais de cento e vinte milhões de hectares de grandes propriedades improdutivas no seu cadastro. Então cabe ao INCRA fazer a reforma agrária, não é? E autuar esses imóveis que são improdutivos. Mas o INCRA também não tem feito. E a expectativa é que o Ministério Público atue nesses casos. O outro item é o cumprimento da legislação ambiental. E todos sabem que a legislação ambiental está sendo descumprida no Brasil correntemente. E, entretanto, o IBAMA [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais] que é o órgão que deveria multar os que descumprem a lei, na realidade, está impedido porque o governo resolveu por decreto adiar o cumprimento da lei. Um paradoxo, porque há o descumprimento e o Estado não atua no sentido de impedir esse descumprimento. O terceiro item é o cumprimento da legislação trabalhista. Quer dizer, o Ministério do Trabalho tem inúmeras ações de combate ao trabalho escravo e, entretanto, a lei, o projeto de lei, que está no Congresso para criminalizar a presença do trabalho escravo no Brasil, não é aprovado pelo Congresso. E mesmo assim o Estado não atua no sentido de garantir que o descumprimento da legislação trabalhista deixe de existir. E evidentemente o único item que já virou lei é o que se refere ao cultivo de drogas na terra, que essa as terras são sumariamente expropriadas. Mas então você veja, nós temos três itens, não é ?, que são itens que permitiriam já hoje o Estado atuar no sentido da desapropriação por descumprimento da função social da propriedade da terra e, entretanto, ele não atua. O governo não cumpre a Constituição, não é? E evidentemente, como a maior parte da sociedade também não se mobiliza, vamos ficando nessa situação de ausência dessa política de reforma agrária, por conta de que o governo não cumpre as leis: o Estatuto da terra, que manda fazer os Planos Nacionais de Reforma Agrária, e a legislação do descumprimento da função social da terra.


TSM: Então fica claro na fala do professor que não só é possível como é necessária a reforma agrária. É isso mesmo?


AUO: Olha, se nós olharmos a luta dos camponeses brasileiros pela terra, nós vamos ver que eles não pararam de lutar. Basta olhar os dados de conflitos de terras que a CPT levanta anualmente. Eles não pararam! A luta dos posseiros por um pedaço de chão, ela é histórica no país. Porque o campesinato brasileiro foi sempre um campesinato sem terra. E a luta pela terra, efetivamente, ela só se pôs de forma efetiva a partir das Ligas Camponesas nas décadas de 50 e 60,e depois com os posseiros na década de 70, principalmente, e mais tarde, 80, 90, e agora, primeira década do século atual, com os movimentos sociais e sindicais. Então na realidade o campesinato brasileiro ele tem uma história de que ele se trata de uma classe em formação, não se completou essa formação. Então, se nós olharmos para esses conflitos, nós vamos verificar que há um número grande de famílias que ultrapassa aí mais de um milhão de pessoas, de famílias, que estão em luta para ter um pedaço de chão. Então na realidade essas famílias que estão em luta, são a prova inequívoca de que tem o desejo da reforma agraria, não é? E, evidentemente, que os estudos que foram realizados até hoje tentando fazer o levantamento desse número, quais seriam os números de famílias com potencial para um programa de reforma agrária, apontam que elas giram em torno de cinco milhões de famílias que potencialmente poderiam ir para terra numa política efetiva de reforma agrária. Que não pode ser só uma política fundiária, tem que ter uma política agrícola de apoio a esses assentados, não é? Então, a necessidade existe! Eu lembrei ainda há pouco que 46% dos miseráveis estão no nordeste e estão na área rural. Isso é uma demonstração de que se trata de um percentual de famílias que poderiam ser objeto de uma política de reforma agrária


TSM: Como o professor já tocou na questão, eu queria agora que o professor aprofundasse em como o senhor vê a diferença entre a reforma agrária clássica e essa reforma agrária popular que os movimentos sociais, mas principalmente o MST, têm proposto.


AUO: Bem, aí tem um problema de compreensão nesses dois conceitos, que eu acho que é preciso esclarecer. No Brasil nunca foi feita a reforma agrária. Então, eu, particularmente, não entendo como se pode ter mais de um tipo de reforma agrária, se ela nunca foi feita, não é? E a reforma agrária no Brasil é aquela que está expressa no Estatuto da Terra e que foi abrigada na Constituição brasileira de 1988, e que dois Planos foram feitos; o primeiro no governo Sarney, que se propunha a assentar mais de um milhão de famílias e que na realidade assentou pouco mais de 80 mil famílias; e o segundo, que foi no primeiro mandato do Lula, que se propôs a assentar 400 mil e não assentou; assentou 150 mil famílias. Então, na realidade, nós nunca tivemos reforma agrária efetiva. Então como é que pode existir uma reforma agraria clássica e uma reforma agrária popular? Na realidade se trata de uma invenção, não é? Os movimentos sociais inventaram isso, de que a reforma agrária clássica é aquela que os partidos comunistas, os dois, o PCB [Partido Comunista Brasileiro] e o PCdoB [Partido Comunista do Brasil], diziam que era necessário para que o capitalismo avançasse no Brasil. Então na realidade essa chamada reforma agraria clássica, quem tem que esclarecer são os partidos comunistas, que eles é que falavam que a reforma agrária era necessária a uma reforma, a um avanço das relações capitalistas no campo brasileiro, não é? Tanto é que o PCdoB ainda tem a convicção de que tenha feudalismo no Brasil. E uma serie de intelectuais no Brasil acreditam que tenha feudalismo no Brasil, não é? E evidentemente que são essas pessoas que têm que explicar o que é essa reforma agrária clássica. Na realidade para mim é uma justificativa para que não se faça luta pela reforma agrária e para que não se entenda que a reforma agraria ela é hoje parte da Constituição brasileira e que, portanto, é uma obrigação do Estado brasileiro fazer. Independente dos governos. É uma obrigação do Judiciário fazer com que o Estado brasileiro e os governantes cumpram a Constituição brasileira e, portanto, façam a reforma agrária. Agora, a reforma agrária popular, essa está esclarecida nos textos do próprio MST, em que se refere a uma reforma agraria profunda, que transforme o modelo. Como eles dizem, o modelo existente, ou seja, que se transforme o capitalismo e que se chegue ao socialismo. Eu entendo que no socialismo... aí também há um equivoco. Para chegar ao socialismo não se trata de fazer reforma agrária, se trata de fazer uma revolução. E uma revolução é muito mais do que uma reforma agrária. Porque na realidade você muda o modo de produzir da sociedade. Então, nós estamos diante de dois equívocos, na minha opinião. O primeiro de chamar aquela que não foi feita de reforma agrária clássica; e o segundo de chamar de popular uma que vai ser a revolução, e que a revolução é que vai permitir fazer, e que, portanto, é igualmente equivocada. E é óbvio que essa reforma agrária chamada de reforma agrária popular, ela é uma questão que se põe para o futuro da sociedade, caso ela tenha como ideal utópico fazer essa revolução socialista, como se defende.


TSM: Quais os principais limites e potenciais das políticas públicas em desenvolvimento para os assentamentos rurais hoje?


AUO: Na realidade, o Estado brasileiro nunca conseguiu consolidar uma política efetiva de reforma agrária. Uma política efetiva de reforma agrária ela pressupõe uma politica fundiária, pressupõe uma política agrícola. Uma política agrícola que visa criar as condições e a infraestrutura para que as famílias desses assentados consigam se reproduzir socialmente e estarem em condições de oferecer à sociedade uma determinada produção de alimentos. Na realidade, isso nunca foi feito, porque o governo, na realidade, os governos diferentes, até agora só fizeram foi uma politica fundiária, uma política de assentamentos, e a chamada politica agrícola ela ficou à“Deus-dará”; porque ela começou no governo do Sarney com o PROCERA [Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária]. O PROCERA era um programa efetivamente voltado para reforma agrária, com destinação de recursos financeiros a fundos perdidos, para que essas famílias assentadas criassem as condições para poder continuar, para poder produzir e continuar produzindo na sua trajetória histórica. Entretanto, não foi isso que aconteceu. Fernando Henrique quando assumiu o governo extinguiu o PROCERA e criou o PRONAF [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar]. E o que é o PRONAF? Joga os assentados no sistema financeiro, ou seja, ele já começa a vida de assentado endividado, porque tem que buscar recurso para fazer o plantio. E aí, tem que se submeter aos mecanismos de mercado na hora de vender, porque tem que fazer recurso financeiro para pagar a dívida que fez. Então, na realidade, isso não é política de reforma agrária, isso é destruição da política de reforma agrária. Então é óbvio que tinha que ser extinto o PRONAF e ser criado um fundo, um fundo de ajuda à implantação da reforma agrária; um fundo que não tivesse como pressuposto a cobrança de juros. Você veja, mas que se constituísse num volume de recurso destinado às famílias que vão entrar no processo produtivo e que depois devolvem esse dinheiro àquele fundo para que outros possam se utilizar dele. Ou seja, a reforma agrária precisa de uma política de subsídio. No mundo inteiro a agricultura é subsidiada. É uma ilusão a pregação do agronegócio dizendo que no Brasil a agricultura não tem subsídio. Na verdade, tem subsídios indiretos. Por exemplo, os homens do agronegócio não pagam as dívidas, não é? Essas dívidas vão sendosecuritizadas; isso é uma forma de subsídio. Então... mas no mundo inteiro a agricultura é subsidiada. Na Europa, nos Estados Unidos [da América], no Japão; então, é... na realidade, é preciso uma política de subsídio capaz de formar esse campesinato e dar a ele condições de poder ser produtor que possa oferecer à sociedade uma contrapartida em produção agrícola. Entretanto, não é isso que acontece; que nós assistimos. O governo do Partido dos Trabalhadores não tem essa visão. Ele entende que os camponeses não conseguirão produzir comida. Na realidade quem vai produzir é o agronegócio. Essas são as teses que estão em vigor. Mas são as teses do José Graziano da Silva, que o Partido dos Trabalhadores segue. E o José Graziano da Silva, basta olhar sua bibliografia, para verificar que ele não defende a reforma agrária mais, não é? E que, portanto, a concepção dele de agricultura é que a fome se resolve por distribuição de renda. E é isso! Foi isso que o governo começou fazer. Lula, no seu primeiro mandato, com o Fome Zero. E é isso que a Dilma quer continuar a fazer agora, com o combate à miséria extrema.


TSM: Em que medida, então, nesse cenário que o professor expõe, o assentamento pode ser entendido como um espaço de resistência?


AUO: Na realidade, eu costumo sempre dizer que a luta dos camponeses é maior do que a luta dos movimentos sociais e sindicais. Os movimentos sociais e sindicais, eles marcaram a historia do Brasil nesses últimos 27 anos pela sua ação política. Eles marcaram a história! Porém, eles não são maiores do que o movimento camponês no Brasil. É por isso que quando o movimento social reflui a sua ação política, os camponeses voltam a lutar. Através do processo de abertura de posse e de defesa da posse da terra nas áreas em que eles conseguem abrir a posse. Então, na realidade, os acampamentos [assentamentos], eles só vão continuar sendo espaço... eles serão sempre espaço de resistência do campesinato. Serão sempre! Enquanto for possível eles se reproduzirem socialmente. Porque senão, eles também acabarão migrando e abandonando esses assentamentos. Já há uma evasão dos assentamentos. O INCRA finalmente divulgou os dados de lotes retomados. E eles respondem por algo em torno de 10% dos assentamentos realizados na média nacional. Evidente que tem diferenças entre o sul e o norte; mas na média dá algo em torno de 10%. Isso quer dizer o seguinte: que uma parte das famílias assentadas já deixou esses assentamentos. Mas eles, os outros 90%, 80% que lá ficaram, continuam essa luta para continuar tentando se reproduzir socialmente. Então, na realidade, é preciso que o Estado faça uma politica agrícola sólida; para que essas famílias consigam resistir. A ideia de espaço de resistência está ligada à ação dos movimentos sociais. Na medida em que os movimentos sociais mudam a sua estratégia política, o campesinato, mesmo o campesinato militante do MST, ele vai avaliar politicamente se deve se engajar ou não. E é, evidentemente, que nós não temos indicadores nenhum, nem estudos para saber se tem havido mudança nesse comportamento que tem sido de luta, não é?,dos assentados nos assentamentos do MST. Mas na medida em que mudam a estratégia e a tática política, é claro que esses sujeitos sociais vão se reposicionar politicamente, não é? Eu não teria condição nenhuma de afirmar se a luta vai aumentar ou vai diminuir em função dessa mudança de orientação política que o MST vem tendo nos últimos anos.


TSM: Hoje ainda é possível a gente falar do campesinato como sujeito social? E, diante disso, qual o papel que ele cumpre e/ou deve cumprir na conformação de outra realidade agrária em âmbito nacional?


AUO: Eu faço parte daquele conjunto de intelectuais que entende que o campesinato é uma classe social; que entende que o campesinato brasileiro está em formação, isto quer dizer, que é uma classe em formação; isto também quer dizer que é também uma classe em expansão. Ou seja, o campesinato ele não desapareceu em lugar nenhum do mundo. E se ele não desapareceu, ele continua a existir e continuará existindo. É óbvio que, no caso brasileiro, o conflito pela terra é uma evidência empírica que esse sujeito social está em luta. E os dados, como eu disse, da CPT, mostram que esses conflitos têm aumentado; que o número de pessoas, de famílias, tem aumentado. Que o número de pessoas tem aumentado. Isso são indicadores que o campesinato, como sujeito social e como classe social, está em pleno processo, em pleno processo de formação. E o que tem mudado, como já afirmei, são as suas estratégias de lutas. Se agora os movimentos sociais não respondem à essa necessidade histórica, eles estão fazendo a luta direta através das posses.


TSM: Recentemente o professor falou sobre a necessidade de criar mecanismos legais para que o assentamento, a propriedade do assentamento, não volte, não retorne ao mercado de terras. Fale um pouco sobre isso.


AUO: Não. Na realidade, a legislação brasileira ela é...ela tem dois tipos, nós temos vários tipos de assentamentos. Historicamente, os projetos de assentamentos, eles estão calcados no princípio de que o assentado, a família do assentado, num determinado momento em que o assentamento ganha sua emancipação, ele possa receber o título de propriedade da terra e, consequentemente, é evidente que essa terra, pela legislação brasileira em vigor, volta ao mercado de terras. E não há impedimento nenhum do ponto de vista legal que essa terra seja vendida ou comprada por quem quer queseja, pequeno ou grande Trata-se de uma característica da legislação brasileira. Mas há também na legislação dos assentamentos a possibilidade daqueles assentamentos em que há maior dificuldade para que essas terras voltem ao mercado de terras, como por exemplo os projetos PDS [Projeto de Desenvolvimento Sustentável], PAE [Projeto de Assentamento Agroextrativista]. São formas de assentamentos em que a terra não pode, não tem como voltar ao mercado de terras. Na realidade, quando a família quer deixar o assentamento, ela é substituída por outra. Então, de fato, do ponto de vista legal, é preciso construir uma legislação a partir da qual se impeça que a terra que foi entregue à reforma agrária possa voltar ao mercado de terras. Mas essa é uma lei que ainda está por ser feita. Porque a legislação atual ela não atua nessa direção. Ao contrário, as terras só não têm voltado ao mercado de terras porque o INCRA não tem emancipado os assentamentos. Os assentamentos não têm alcançado índices de produtividade capazes de serem emancipados, e o INCRA há muito tempo não faz a emancipação de assentamentos. A não ser ações, assim, muito individuais, de um número pequeno de famílias que acabaram tendo seus lotes emancipados, mas na realidade, emancipação massiva, através de todo o assentamento, isso há muito tempo não ocorre. E é isso que impede que essas terras ou parte dessas terras acabe voltando para o mercado de terras. Mas, de fato, de fato, seria desejável que tivéssemos uma lei que impedisse que as terras da reforma agrária voltassem ao mercado de terras.


TSM: Como o senhor avalia o novo rural do Graziano e quais suas implicações, sobretudo, para os pequenos e médios proprietários rurais?


AUO: O novo rural do Graziano é um equívoco. Eu já escrevi um texto sobre isso onde eu demonstro, por A mais B, que na realidade houve um equívoco do ponto de vista estatístico na análise que o Graziano faz da PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] e que é a base para fazer a construção do novo rural. A PNAD ela é construída a partir de uma mostra estatística do censo; dos censos demográficos e acontece o seguinte: se nós olharmos em vários municípios brasileiros nós temos uma situação, que é: as famílias que vivem na área rural, elas estão submetidas à uma legislação que depende das câmaras de vereadores dos diferentes municípios e que esses municípios eles, é... essas câmaras municipais, dependem de um decreto e de uma lei municipal em que a prefeitura determine o que é área rural e o que é área urbana. E muitos desses municípios eles têm uma legislação que é... como que eu poderia dizer?, ela é uma legislação que não corresponde à realidade de fato, histórica. Bem, então, as prefeituras municipais têm essas leis que variam de um município para outro. Então o IBGE, ele historicamente sempre seguiu esse critério de respeito à legislação de base municipal. E, evidentemente, para dar um exemplo, se a gente olhar nos censos brasileiros demográficos de 2000ou o anterior, nós vamos verificar que o município que tem a maior população rural, é o município de São Paulo. E na realidade isso não corresponde à realidade. Ou seja, o problema é que na zona sul, é área de proteção ambiental, então ela é classificada como rural, mas o que você tem lá é uma expansão urbana, clandestina, dentro da área rural. Então isso enviesa a amostragem da PNAD para área rural, porque o maior número de domicílios está lá, e lá não é rural, é urbano. Então, eu, nesse texto que eu publiquei, mostro isso. No livro campo e movimento no século XXI, eu mostro isso: que há um problema estatístico. E aí, o quê que acontece? Se amostragem caiu naquilo que é urbano, na realidade é um viés da amostra. E é óbvio que o IBGE não é culpado. Porque o IBGE explica o critério. O problema é fazer as interpretações que o Graziano fez, de que a maior parte da população já tem função, exerce trabalho urbano. Então é aí que está o equívoco do novo rural do Graziano. Quer dizer, tem um pecado original; quer dizer, o problema que está na estatística da PNAD. É bom dizer que a amostra da PNAD do ponto de vista estatístico é perfeita. Apenas a legislação de urbano e rural no Brasil das câmaras municipais é que não obedece de fato essa nova geografia do urbano brasileiro.


TSM: Então, isso dá um elemento importante para a gente pensar a inserção das atividades não-agrícolas no meio rural. Tem-se dito que com a inserção destas atividades há um processo de esquecimento do papel agrícola no campo. Como o professor vê isso e se isso dá margem para pensarmos num quadro de insegurança alimentar?


AUO: Olha, na realidade, nós sempre tivemos atividades não-agrícolas no mundo rural. Elas sempre existiram, elas não são novidades de agora. Na realidade, elas viraram novidade porque o Graziano, com o novo rural, apresentava essas atividades como sendo o novo no rural. Na realidade, eram atividades que já existiam, não é? Embora, algumas atividades, como o próprio turismo regular rural, ele tem uma cara nova, não é? [Apesar de que] se tem registro da existência antiga de experiências do que vem se convencionando chamar de turismo rural hoje na área rural. Mas na realidade, outras atividades, como por exemplo algumas atividades industriais, elas sempre existiram. O IBGE mesmo, no censo agropecuário, levanta essas atividades como atividades que ele classifica como indústrias domésticas. Então, já tinha.Já no próprio censo do IBGE era possível detectar a presença dessas atividades. O problema é como o mundo intelectual começa a fazer abordagens dessas atividades e propor políticas públicas. Porque a conclusão do novo rural do Graziano é de que a atividade agrícola é uma atividade de meio expediente, o que ele chama depart-time. Então, na realidade, isso quer dizer o seguinte: cada vez mais o agricultor estaria dedicando um tempo menor para agricultura propriamente dita. Eu queria ver uma pesquisa empírica que provasse isso. O próprio Graziano não fez a pesquisa empírica. Ele deduziu dos dados da PNAD; como eu disse, equivocadamente. Então, na realidade, na realidade, os camponeses brasileiros continuam produzindo, continuam trabalhando de sol a sol. E, claro, parando nas épocas de festas porque eles têm as festas como parte constitutiva da sua vida social. Então, na realidade, háa conversão dessas festas em, agora, uma atividade de turismo. Na realidade, as festas sempre existiram. Os urbanos sempre foram convidados para essas festas. Eu participei de muitas delas na minha terra lá no interior de São Paulo, cujo convite era feito em aberto para a sociedade em geral comparecer. Porque também interessava nessas festas, dessas comunidades camponesas no interior do Brasil, arrecadar dinheiro para fazer o templo religioso; para arrecadar dinheiro para fazer o clube social. Ou seja, também interessava a eles uma relação forte com a área urbana. E é comum no interior desse país se divulgar as festas nas estações de rádio, nos programas de música sertaneja. Então, isso sempre existiu, não é novidade, não é? Na realidade, volto a insistir, a novidade é o estudo dessas atividades, e não elas em si. Bem, mas se isso traz segurança ou insegurança alimentar, nem uma coisa nem outra. Em primeiro lugar, é um equívoco falar em segurança alimentar. Na realidade, nós tínhamos que falar em soberania alimentar, e não em segurança alimentar. A segurança alimentar, como está posta hoje no mundo da política, da política pública, ela veio para substituir a ideia de soberania alimentar. Ela é uma construção ideológica do neoliberalismo. Porque se nós formos à literatura e verificar o que é segurança alimentar, tudo o que tem escrito sobre segurança alimentar refere-se a ações de saúde pública para impedir que as famílias, que a sociedade, consuma produtos que não deviam estar contaminados, produtos com presença de agrotóxico, etc., etc. É isso que é segurança alimentar na literatura historicamente. O neoliberalismo pegou esse conceito para dizer olha: eu vou substituir o conceito de soberania pelo conceito de segurança. Ou seja, se o país não produz comida, você importa de outro país. Mas e aí quando outro país também não aceitar exportar, como aconteceu recentemente o caso do trigo na crise de 2008? O Brasil dependia do trigo argentino. E Argentina o que fez? Não exportou mais trigo. Para deixar o trigo para os argentinos consumirem. E aí o Brasil teve que se aver no mercado, e aí pagou preços caríssimos no trigo canadense e norte-americano. Então isso mostra que na realidade o Brasil não tem soberania alimentar. No Brasil nós comemos a safra que colhemos. Ou seja, um país sem nenhuma estratégia de soberania alimentar. A produção dos alimentos base, arroz, trigo, feijão, não cresce desde 1992. Ou seja, desde a década de 90 não há aumento de produção. Isto quer dizer o seguinte, a cada ano que passa nós temos uma oferta menor de alimentos para uma população que continua crescendo. Então, o Brasil não tem uma política de soberania alimentar. E o que é mais absurdo, a Argentina passa a produzir feijão para exportar para o Brasil. Os Argentinos não têm o feijão como um alimento na sua dieta alimentar. Ou seja, na realidade, o Brasil, que sempre foi autossuficiente em feijão, arroz, está tendo que, vira emexe, ter que recorrer à politica de importação, agora da Argentina, e do México que é um país que tem o feijão como base alimentar.


TSM: Então, diante disso, o que o professor pensa a respeito do modelo de produção do agronegócio, tanto nacional quanto internacionalmente?


AUO: O agronegócio nunca esteve preocupado em produzir comida para os brasileiros! É isso que precisa ficar muito claro. O agronegócio sempre esteve interessado em produzir mercadorias para vender no exterior a quem tem dinheiro para comprar. Então, no passado era Europa, depois Estados Unidos [da América], depois o Japão e agora China, que é a bola da vez. Então, na realidade, o agronegócio nunca esteve preocupado com uma estratégia de construção de uma soberania alimentar no Brasil, como os Estados Unidos possuem. Os Estados Unidos possui um sistema de soberania alimentar, e tem alimento estocado que garante o abastecimento deles em caso de crise. Nós não temos! Então, o agronegócio, ele se constitui numa politica de exportação de mercadorias; e sempre foi assim, desde o período colonial até hoje. Tudo o que se quer é exportar, e evidentemente sem compromisso nenhum para com os brasileiros. Então, no meu entendimento, a política do agronegócio é uma política de reatualização do passado. Uma reatualização que tem sido permanente, porque os governos têm admitido essa politica como a sua politica agrícola.


TSM: A aquisição de terras de forma direta ou indireta pelo agronegócio põe em xeque a soberania territorial do país?


AUO: Essa questão de aquisição de terras no Brasil, ela precisa ser muito bem explicada. Primeiro, é preciso dizer que metade do país está apropriado privadamente e, dessa terra apropriada privadamente, quase duzentos milhões de hectares (200.000.000 ha) quem apropriou não tem documento para provar que é proprietário. Então, hoje nós temos uma terra grilada e essa terra grilada, na realidade, é uma terra pública devoluta, ou seja, uma terra que não foi discriminada, ou pelo INCRA na área de sua jurisdição, ou pelos Institutos de Terras nas áreas das suas jurisdições estaduais. Então, na realidade, nós vivemos uma situação em que quase a metade do Brasil foi cercada e não pertence a quem cercou. Então, esse é o primeiro problema grave da questão. O segundo, é que o latifúndio é improdutivo. Ou seja, a maior parte das propriedades não atende os critérios de 1975, do censo agropecuário de 1975, dos índices de produtividade; e se aplicado 172 milhões de hectares, perdão, 120 milhões de hectares, das grandes propriedades são improdutivas, mesmo com os índices de 1975. Então, nós temos essas duas realidades, a terra improdutiva e a terra grilada. Fora isso, nós temos essa divulgação de que os estrangeiros estariam adquirindo terras no Brasil. Os estrangeiros sempre adquiriram terras no Brasil. É só pensar o [Henri] Ford no começo do século passado, para plantar seringa lá na Amazônia, em Fordlândia e Belterra. Durante os governos militares, pensar o projeto Jari do Daniel Kate, são exemplos de que os estrangeiros sempre compraram terras na história do Brasil. Essa compra compromete a segurança brasileira, a segurança territorial? Em absoluto! A legislação de vendas de terras a estrangeiros garantem que eles podem comprar até um quarto (1/4) do Brasil, e nunca ninguém questionou essa legislação. Exceto alguns poucos estudiosos, inclusive eu. E essa legislação, então, ela é uma legislação que favorece a presença dos estrangeiros aqui. Mas há um escândalo, os estrangeiros compraram muitas terras no Brasil? Não é verdade. Os estrangeiros têm aío controle de, mais ou menos, 4 milhões e meio de hectares. Isso não é um problema. Em 1968 eles chegaram a ter comprado 27 milhões de hectares, e aí sim apareceu como um certo escândalo. Tanto é que a legislação restritiva foi criada em 1971, durante a ditadura militar. E de lá para cá, houve uma diminuição da terra de estrangeiros. Se você olhar os dados de 72, comparando com os atuais, houve uma diminuição da área de estrangeiros no Brasil. O problema, o que tem aumentado no Brasil é a área grilada, de terras. Ou seja, o agronegócio ele opera pelo mecanismo de grilagem e não pelo mecanismo de compra e venda, como manda a legislação brasileira. Mas, ao contrário, ele prefere grilar e daí muda a lei para poder fazer a regularização da grilagem. É o caso das medidas provisórias 422 e 458, que vai permitir que terra grilada do INCRA na Amazônia legal, até 1500 hectares, possa ser regularizada.


TSM: Professor, nesse quadro que expõe, então, diretamente, de fato, não podemos pensar nessa aquisição internacional de terras como um problema. Mas e de forma indireta, como há apontamentos, aí sim o problema se coloca ou ainda assim o professor entende que não é mesmo um problema?


AUO: Em primeiro lugar, é preciso entender como é que se faz o processo produtivo no campo no capitalismo. Não é da prática do setor de grãos, do setor de carnes, não é da prática desses setores produzir; os grandes monopólios produzirem diretamente no campo. Os grandes monopólios, eles se concentram na circulação das mercadorias. Então, as multinacionais, a DN, Bunge, Cargil, Louis Dreyfus, eles não vão produzir, eles plantarem os grãos que eles comercializam. Ao contrário, quem planta são capitalistas e camponeses, espalhados pelo mundo. Inclusive lá nos Estados Unidos e na Europa. Então, não é da ação desses grupos que fazem o monopólio, do setor de grãos, de carnes, etc., atuar no sentido de produzir direto no campo. Portanto, ele não tem interesse nenhum em ter as terras. Porque não é um problema dele produzir no campo. Se você for verificar, isso é histórico, essas empresas nunca compraram terras. E não estou me referindo aqui no Brasil; em qualquer lugar do mundo. Então, esse é o primeiro ponto. Segundo ponto, há dois setores apenas no Brasil em que os monopólios atuam adquirindo terras: um é no setor de cana, canavieiro, e outro no setor de silvicultura, ou seja, plantio de florestas para celulose e madeira. Então, nesses dois setores esses monopólios atuam adquirindo terras. Pois bem, exatamente o exemplo que o INCRA tornou público de compra de terras através de “laranjas”, foi o caso da StoraEnso no Rio Grande do Sul, que é uma indústria do setor de celulose e que lá os dois executivos da empresa montaram uma indústria, montaram uma empresa “laranja” e compraram terras em nome deles, mas tendo lá um contrato de gaveta com a StoraEnso. E esse episódio veio a público no mês de fevereiro de 2008, pelo INCRA, o INCRA tornou público. Inclusive, através de uma manifestação. Numa entrevista do Joao Pedro Stédile na tv Estadão, no dia 26 de fevereiro, ele denunciou essa compra através de “laranja” da StoraEnso; mas na realidade no dia 4 de março, o presidente do INCRA faz um depoimento na comissão de agricultura do Senado e lá denuncia que os estrangeiros estão comprando terras no Brasil. Então, na realidade, há uma articulação nesse sentido, porque o segundo mandato do governo Lula, é um mandato de contrarreforma agrária, ou seja, de entrega das terras do INCRA aos grileiros na Amazônia legal. E para fazer isso o governo criou esse factoide da venda de terra à estrangeiros, através de “laranjas”, etc. Não é que a compra pela StoraEnso não tenha verdade, não tenha de fato sido feita através de laranja; mas o que que aconteceu no caso da StoraEnso? Aprovado no fim do ano, no meio do ano, a medida provisória 422, o que fez o governo, os órgãos do governo? Eles regularizaram as terras da StoraEnso. Então, se de fato, o que a StoraEnso fez fosse ilegal, o governo tinha aberto um processo contra a StoraEnso, e, na realidade, ela regularizou as terras. Ou seja, o governo não está afim de comprar nenhuma encrenca com o agronegócio. Nem de brasileiro, nem de estrangeiro. Mas eu volto a insistir, no setor sucroalcooleiroo que nós temos assistido é que quem compra as terras... perdão. As terras, como não se trata de uma compra das empresas, quer dizer, quando a Dreyfus vai lá e compra a Santelisa Vale, dá a impressão que foi a Dreyfus que ficou dona de tudo lá. Não é verdade! O grupo Santelisa Vale continua proprietário de uma parte das ações. E essa parte das ações é o equivalente em terras. Então, na realidade, eles são sócios. Os brasileiros e os estrangeiros são sócios. Agora, os brasileiros são sócios minoritários. Mas sua parcela é a propriedade das terras no capital da empresa; você entende? E isso mostra que na realidade não tem infringência legal nenhuma. Porque a terra continua em nome de brasileiros. E depois, é bom também deixar claro, que o número de empresas no setor sucroalcooleiro também não é majoritário. Os estrangeiros controlam hoje algo em torno de 25%, um quarto do setor. Então também não se pode dar o exemplo da Dreyfus e dizer que esse é o caso generalizado no Brasil. Haveria um aumento no setor sucroalcooleiro se de fato o etanol se tornasse uma commoditie e começasse a ser usada na mistura da gasolina no Japão, nos Estados Unidos e na Europa. Mas isso ainda não aconteceu. O etanol nem uma comoditie é. Alias, nos dois últimos anos o Brasil está tendo que importar etanol. Porque, evidentemente, o preço do açúcar no mercado internacional fez com que os usineiros deixassem de produzir etanol para produzir açúcar. Então, na realidade, não existe ainda um mercado, um mercado efetivo de etanol no Brasil. Portanto, não há crescimento dessa coisa. E a crise de 2008, que está aí até hoje, não foi ainda resolvida pelo capitalismo, ela pôs todos os setores empresariais em compasso de espera. Então, todas aquelas projeções de crescimento do consumo de celulose também estãoem compasso de espera. Porque se você não tem desenvolvimento econômico, não tem crescimento econômico na Europa, nos Estados Unidos, Japão e mesmo na China, você não tem mercado para ampliar essa área plantada para fazer aumentar a produção de celulose. Por isso, por exemplo, que a Votorantim abandonou o projeto de floresta no Rio Grande do Sul. Inclusive, comprou a Aracruz, assumiu o controle da Aracruz, e vendeu a unidade da Aracruz no Rio Grande do Sul para uma multinacional chilena que não tem planos de expansão até agora. E a StoraEnso, mesmo a StoraEnso, que tinha um plano para criar uma área de plantio de floresta lá no sudoeste do Rio Grande do Sul, na divisa do Paraná e Argentina, também congelou. Exatamente esperando ver como essa coisa da crise se resolve. Então, essa coisa de venda de terras a estrangeiros, é muito mais um factoide do que de fato... a encobrir, a tentar encobrir a contrareforma agrária do segundo mandato, do que de fato um fato político, um fenômeno econômico que está ocorrendo no Brasil. E por que que os jornais noticiam? Por exemplo, com relação à China. A China, todo mundo acha que a China já tem terra no Brasil, e a China, a única propriedade que a China tem no Brasil, que empresas Chinesas Estatais têm, são 150hectares em Barreiras, no oeste da Bahia, que o governo do PT da Bahia doou pra ela montar lá a indústria de esmagamento de soja para exportar farelos e óleo para China. Mas 150 hectares. Não é área significativa. Então, agora, por que que os jornais noticiam? Porque interessa à especulação imobiliária. Esse país é um país que vive da especulação imobiliária. O capitalismo brasileiro é um capitalismo rentista. Então, na realidade, há um duplo jogo. Pressiona o mercado de terras por um lado, e por outro lado, pressiona os movimentos sociais que ficam preocupados que a Pátria está sendo vendida para os estrangeiros. Mas na verdade não está. Na realidade, é bom que se diga, sobre esse aspecto, que todos nós deveríamos nos preocupar com as terras dos grandes proprietários no Brasil. No Brasil há no cadastro do INCRA 15.000 [quinze mil] imóveis que têm área superior a 2.500 [dois mil e quinhentos] hectares e que eles abarcam 98.000.000 [noventa e oito milhões] de hectares. Esse é um problema maior do Brasil. E não os 4.500.000 [quatro milhões e quinhentos mil] hectares na mão de estrangeiro. Se for maior que 2.500 [dois mil e quinhentos] hectares, também deveria ser confiscado, na minha opinião.


TSM: Agora, mudando um pouco de ares e voltando um pouco para os assentamentos; como o professor vê a inserção do turismo nos assentamentos de reforma agrária e se o acontecimento mesmo da atividade, isso preocupa, não preocupa; qual a sua posição?


AUO: Eu penso que as atividades, o desenvolvimento de atividades econômicas nos assentamentos, para além da atividade agrícola propriamente dita, elas vão ocorrer se aqueles sujeitos sociais assim o desejarem. Não adianta eu ter uma política pública de implantação de turismo rural nos assentamentos se as famílias de camponeses não querem tocar essa atividade, não querem promover essa atividade. Então, é evidente que depende deles. Como política de geração de renda, é evidente que não tenho nenhuma posição contrária a que isso se faça. Mas volto a repetir, desde que seja uma decisão deles e que tenha lá uma infraestrutura mínima que seja capaz de permitir que essa atividade se faça, e que envolva essa população lá, local, do próprio assentamento. Bem, então, isso é uma coisa. Outra coisa é uma politica pública. O Estado promover uma política pública para desenvolver turismo rural. É óbvio que o Estado tem que desenvolver políticas públicas para melhorar as condições de produção nos assentamentos. É isso que precisa! E evidentemente que isso ainda não está sendo feito, como já respondi numa outra pergunta, porque nós temos o PRONAF, que é um gargalo na vida desses assentados. Uma parte dos assentados estão numa situação de não pagamento de dinheiro emprestado. E consequentemente são inadimplentes. A Dilma até teve que fazer uma medida aí, agora, recentemente, para que aqueles que têm uma dívida só pudessem fazer nova dívida. Ou seja, já abrindo a possibilidade para o aumento do endividamento e não para a resolução do problema do endividamento. Ou seja, o nó, como eu disse, está no PRONAF e não nas atividades. Então, politicas públicas de geração de renda são sempre muito bem vindas em qualquer lugar que elas forem implantadas. O problema é sempre saber se elas são viáveis e necessárias. É esse estudo de viabilidade que deveria ser feito antes de fazê-las. Hoje elas vêm em função dessa concepção que o governo do Partido dos Trabalhadores tem de que a atividade agrícola não é mais geradora de renda. Mas esse mesmo governo do PT sabe que o programa de compra, de aquisição de alimentos, o PAA, ele é um sucesso nos assentamentos. Ele tem mostrado que os assentados podem sim produzir comida e ter uma melhoria na sua renda, através do PAA. Então o PAA é um exemplo de que, se tem uma política sólida, como é o PAA, para aquisição de alimentos, os assentados vão para esse setor e não para outras atividades, tipo turismo. Mas é evidente que há determinadas regiões em que o turismo é também uma coisa que também pode ser implantada. Sobretudo ao redor de grandes cidades. Há essa possibilidade. Então, não vejo incompatibilidade. Vejo só que o problema situa-se no plano das prioridades. E evidentemente quem tem que decidir são os assentados, se a gente quer um planejamento participativo.


TSM: Professor, o turismo sempre pode ser apontado como uma atividade de consumo do espaço? Esse conceito aproxima-o do modo capitalista de produção? Esta atividade, dada a perspectiva da mercadoria, pode se contrapor ao projeto de emancipação dos sujeitos?


AUO: Olha, eu tenho sempre cá meu pé atrás com as formulações teóricas que não têm sustentação metódica. Veja bem, primeiro lugar, essa concepção de turismo como consumo do espaço é uma concepção polêmica. É uma corrente da teoria do espaço que está propondo essa forma de interpretar o turismo, não é? É...na minha opinião, essa forma de interpretação, ela tem um viés idealista. Isso quer dizer o seguinte: no plano do método, a dialética que se tenta implementar, é uma dialética de fundo idealista. Que espaço é esse que se consome? Que espaço é esse? Então, eu, como não faço parte dessa corrente que acredita ser possível construir uma teoria do espaço na geografia, então eu fico sempre nessa posição crítica de que “que espaço é esse que está sendo consumido?”. O Marx quando formulou a concepção do consumo, do conceito de consumo, ele formulou um conceito que tem a ver com a possibilidade da constituição de uma mercadoria; da sua apropriação física. É claro que o capitalismo vai querendo transformar tudo em mercadoria. Então eu não estou ignorando que o capitalismo tem essa força e tenta [usá-la]. Mas, daí eu transformar já imediatamente esse ato de visita a uma área rural numa mercadoria a ser consumida, eu vejo lá meus “senões”. Em função da base materialista que eu uso por parte da dialética para fazer a análise do mundo real. Então, eu penso que a geografia ainda terá que discutir esses conceitos para que a gente possa chegar a uma aproximação teórica mais fortalecida, mais coerente, mais consistente. Acho ainda que ela ainda tem fragilidades. De qualquer forma, é um esforço no campo do marxismo de fazer essa aproximação entre o turismo e a mercadoria produzida pelo turismo, e o pensamento marxista. Mas é bom lembrar sempre, que será sempre em relação ao pensamento marxista, e não ao pensamento marxiano, porque o Marx não se propôs a pensar o turismo.


TSM: Bom, fale então um pouco, professor, sobre a crise do atual modelo de produção e organização social e as possibilidades, necessidades, de sua superação.


AUO: Bem, em primeiro lugar é preciso dizer o seguinte: a crise de 2008 pegou todos os intelectuais, os políticos, com as calças nas mãos, como se diz na gíria. Ou seja, ninguém tinha aporte teórico para, primeiro, prever que a crise iria acontecer, e entender o que aconteceu em 2008. Eu me lembro, eu estava na Espanha quando explodiu a crise, e os jornais espanhóis noticiavam em manchete a famosa frase dos ganhadores do prêmio Nobel de economia. A única frase que eles pronunciaram era: só sabemos que não sabemos o que está acontecendo! Ou seja, a única coisa que sabemos é que não sabemos explicar a crise. Isto quer dizer que na realidade não havia esquema teórico ou político para se entender a crise. Claro, na esquerda, no mundo inteiro, tem sempre aquela corrente que já tem a explicação sobre tudo, como o Raul Seixas botou nos versos da música Metamorfose Ambulante. Mas evidentemente todos os partidos políticos de esquerda também foram pegos desprevenidos com relação a crise de 2008. A crise de 2008 está aí, não é? O mundo que nós estamos vivendo, na realidade, é um mundo que tem dois fenômenos juntos. Primeiro é a crise. Estrutural. Botou o mercado financeiro a nocaute. E o capitalismo só não parou porque a base material do capitalismo, que é a indústria, não parou. Enquanto a indústria está produzindo e o consumo continuando aser realizado a mais-valia está sendo realizada e consequentemente o capitalismo continua existindo. O que ruiu foi o tal capital financeiro. É esse que ruiu. E todas as teorias que diziam que o capital financeiro era o coração do mundo. Na realidade, a crise mostra que o capital financeiro não é o coração do mundo. Ao contrário, o coração do mundo continua na indústria, lá no processo produtivo. Claro, lá na agricultura também. Mas comparativamente o setor que mais gera riqueza é a indústria no mundo de hoje. Então, essa crise de 2008, é uma crise que tem essa profundidade. Ela nocauteou o mercado financeiro e deixou as potências capitalistas, Estados Unidos, Europa e Japão a nocaute. E o Japão ainda por cima tem o terremoto e o tsunami para resolver; que aí é uma catástrofe natural. Mas os desdobramentos da crise ainda não terminaram. A Europa está vivendo uma verdadeira tempestade em função dos problemas financeiros com o euro e os países que não conseguem fazer políticas capazes de sustentar a moeda. Então está longe a data de que essa crise terminará. Pelo contrário. Ela está aíem desenvolvimento. Isso quer dizer o seguinte: o mundo inteiro está sujeito às consequências dessa crise. O segundo fato novo é a emergência dos países até então chamados de subdesenvolvidos, depois em desenvolvimento e agora são os países aí emergentes; esses nomes todos que surgem na mídia econômica para classificar países dependentes do capital internacional. E esses países dependentes estão montando um aporte industrial capaz de fazer frente aos países sede dessas empresas mundiais. E há três países que são complicadores do mundo nesse momento histórico: a China, a Índia e o Brasil. Por coincidência são os países que mais compraram títulos do tesouro dos Estados Unidos e, portanto, são os três países que mais têm dinheiro no BIS [Bank for InternationalSettlements], que é o banco internacional, onde os países depositam suas reservas cambiais. Então, essa é a nova realidade do mundo. No último encontro lá na Europa o que se discutia era se esses países iam destinar seus recursos para reforçar o banco europeu, reforçar o euro. E eles disseram: podemos reforçar o caixa do FMI e do Banco Mundial, porém o empréstimo da Europa tem que ser feito do Banco Mundial, através do Banco Mundial. Evidente. Os governosquerem garantia e o Banco Mundial dá essas garantias. E só dá o empréstimo se tiver essas garantias. Então, na realidade, a crise está aí, não se resolveu e esses países chamados de emergentes são a bola da vez. E dão uma certa direção para o capitalismo. Então, hoje os jornais de hoje divulgam os índices de crescimento do último trimestre e o que a gente assiste é um crescimento médio de 2,4%. Mas se formos ver, na realidade, esses 2,4 é porque a China cresceu um pouco mais de 6%. Mas, por exemplo, só os Estados Unidos cresceu 0,4, os países da Europa todos tiveram decréscimo. Ou seja, estão vivendo uma situação de decréscimo na produção. Estagnação econômica, portanto. E a média deu esses 2,4. Então. Mas volto a repetir, os 2,4 em função da China, da Índia e do Brasil que ainda têm crescimento positivo e conseguiram fazer com que a taxa do crescimento mundial fosse ainda positiva. Então, nós vivemos esse quadro. Agora, esse quadro se sustentará por quanto tempo? A própria China, se a gente olha a curva de crescimento da China, ela já está em decréscimo. Quer dizer, ela já cresce menos; não é que ela está caindo. Ela cresce menos do que ela cresceu nos anos atrás. Ora, isso quer dizer o seguinte: a China também está parando seu crescimento. Se ela está parando seu crescimento, a consequência também vai afetar o Brasil. Porque o crescimento do Brasil depende da exportação para China. Mas a exportação para China depende da exportação para os demais países que não estão importando. Então, você tem um jogo mundial que a gente não sabe ainda qual vai ser a resultante final. E, portanto, eu penso que o quadro de crise ainda vai continuar presente nesses próximos... de dois a quatro anos. Portanto, qualquer projeção futura ela é arriscada nesse momento histórico.


TSM: Então, só para reforçar, para fecharmos, fica delicado a gente falar de uma possibilidade de superação desse modelo de produção e organização social?


AUO: Olha, na realidade, o quadro de crise abriria sempre a possibilidade de que você tivesse processos de transformação, ou seja, convulsão social. A crise, como ela ainda não afetou a base produtiva, ou seja, as plantas industriais, elas ainda não tem um correspondente movimento de... ou seja, você tem um aumento de desemprego nos Estados Unidos e na Europa, mas esse aumento do desemprego não foi suficiente ainda para criar um fenômeno social contrário. Por quê? Porque esses países eles têm políticas de compensação social que amortizam, são os seguros desempregos, etc., que amortizam durante o período a situação de desemprego. O problema vai se pôr se esse emprego não puder mais existir e se essa política compensatória de apoio ao desempregado não puder ter continuidade. Então [problema na gravação] muito desse jogo para que problemas sociais existam. Mas as manifestações que nós temos visto, ainda são manifestações importantes do ponto de vista político, mas ainda manifestações de minoria, como aquelas contra o capitalismo, lá perto da bolsa de Nova Iorque e que na realidade foi desmobilizada agora por ação de repressão da polícia norte-americana. Mas de qualquer maneira não dá para eu dizer que a primavera árabe, por exemplo, das manifestações contra os governos ditatoriais, faça parte de uma crise social mundial do capitalismo. É claro que tudo é parte da sociedade capitalista. Mas não ainda numa proporção, eu penso, de colocar em xeque a existência desse modo de produção. Acho que ele ainda... não temos contradições profundas e suficientes para que essa crise sinalize o fim dele.


TSM: Bom, fiquei feliz depois da fala do professor com o posicionamento a respeito do termo camponês. Mas para que a gente possa usar de forma sistematizada, eu queria que, por fim, então, o professor faça um apontamento sobre o porquê usar o termo camponês em detrimento de agricultor familiar.


AUO: Bom, primeiro uma questão teórica e política. Primeiro, do ponto de vista político e, consequentemente, teórico o termo agricultura familiar ele não teve existência antiga no estudo da agricultura mundial. É uma criação do neoliberalismo na década, no fim dos anos 80 e começo dos anos 90, no caso brasileiro trazido pelo Ricardo Abramovay na sua tese “Paradigmas do capitalismo agrário no Brasil”, em que ele diz, no seu livro, que dentro do marxismo não é possível discutir o campesinato, então ele vai sair e vai buscar uma escola weberiana através da qual ele vai formular e vai trabalhar com a ideia de agricultura familiar. Então, é preciso primeiro deixar claro política e teoricamente essa questão. É um trabalho, é uma tese, que traz para o mundo acadêmico uma questão política do neoliberalismo e que vai dar cientificidade a esse conceito. E o Estado brasileiro imediatamente adotou nas suas políticas públicas. Tudo vira agricultura familiar! Se você olhar toda a legislação brasileira da década de 80 e tudo que se escreveu na década de 80, não se falava nesse termo. Pelo contrário, se fala em campesinato ou em pequeno produtor familiar, e não em agricultura familiar como o Abramovay põe em seu livro. Então a primeira coisa é essa. Segunda, [problema na gravação]. Eu sempre costumo dizer o seguinte: é curioso. Quando os italianos, alemães vieram para o Brasil, o quê que eles eram? Camponeses! Vieram para cá e não podem ser camponeses? Quer dizer, são proibidos de ser camponeses. Por quê? Porque o Estado faz um esforço, primeiro aqui em São Paulo. Então, na origem eles são camponeses. Mas é negada a identidade de camponeses para eles. Bem, se nós olharmos o que aconteceu no século passado, no século XX, as maiores revoluções sociais que nós tivemos foram revoluções camponesas. A revolução russa foi na essência uma revolução camponesa, da classe camponesa russa. Com a participação expressiva de uma liderança bolchevique proletária, de ideário proletário. Mas o grosso, que vem fez a revolução, quem segurou à bala a revolução, foram os camponeses russos. Os camponeses chineses fizeram a revolução chinesa e transformaram a China no que ela é hoje. Os camponeses cubanos fizeram uma revolução cubana e criaram uma Cuba como se tem hoje. Os camponeses do Vietnã ganharam a guerra da França, na guerra da Indochina, ganharam a guerra contra os Estados Unidos. Então, os camponeses não existem no mundo?! Isso é um problema dos acadêmicos. De uma parte dos acadêmicos. E um problema de uma parte dos políticos, que não querem ver os camponeses existindo no mundo. Mas eles estão aí. Eles estão ainda, independente de quem estuda, a favor ou contra. Independente, eles estão aí. Eles estão na Europa, estão nos Estados Unidos, estão no Japão e estão aqui. Você me entende? Então, nós estamos diante, na realidade, de um problema que é de natureza teórica e política. Político em função dos partidos e em função do escrito de Marx de que o campesinato iria desaparecer; mas, evidentemente, Marx estava se referindo ao campesinato sérvio que existia na Europa até então. Ele não estava predizendo o que iria acontecer no mundo no século XXI. E os camponeses estão aí. Evidente que o culpado não é o Marx. Os culpados são os marxistas, que passam a usar a citação dele para interpretar o século XXI. Um quadro teórico destinado a entender a história de meados do século XIX. Então esse é que é o problema, que eu penso, teórico e político que existe. Então, há uma decisão política no neoliberalismo de se tentar fazer esquecer essa palavra camponês. É isso que não tem sido denunciado: todo o esforço do neoliberalismo de fazer com que a palavra camponês desapareça. Agora, eu pergunto: quando qualquer um de nós for à Espanha e for lá na área rural da Espanha, como é que eles se autodenominam? Não é de campesinos? Se eu for ao México, como é que eles se denominam, não é de campesinos? Se for à França, como é que eles se denominam, não é de paysan? Então, eu não entendo como que intelectuais podem dizer que no Brasil o termo camponês é só uma exigência do embate político dos Partidos Comunistas, ou que nunca existiu camponês no Brasil. E o quê que existe então no Brasil? Que sujeito social é esse? Ou seja, de que classe social nós estamos falando? Então é essa que é a questão principal! Ou seja, o papel social e o papel político que o campesinato tem e desempenhou no mundo no século passado. As únicas derrotas que o exército brasileiro tem são nos conflitos com camponeses. Em Canudos e no Contestado. Por isso, os militares brasileiros têm ojeriza de movimentos camponeses. Ou seja, a geopolítica dos militares brasileiros tem toda uma estratégia de não deixar que a questão camponesa apareça no Brasil. E, curiosamente, no mundo intelectual, os intelectuais estão diante de um problema social, estão diante de um sujeito social, e preferem ignorar a sua existência. Preferem trata-lode uma forma como ele não se autodenomina.


1 Publicado originalmente em 05 de abril de 2014 na Revista Estudos Geográficos.

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