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Revolução no Sahel?


Ibrahim Traoré e Vladimir Putin em Moscou, 2023
Ibrahim Traoré e Vladimir Putin em Moscou, 2023

“Não estamos em uma democracia. Estamos em uma Revolução Popular Progressista. É impossível nomear um único país que tenha se desenvolvido em democracia. A democracia é apenas o resultado final.” Foi assim que Ibrahim Traoré, líder da junta militar que controla Burkina Faso, proclamou o que chamou de ‘’República Popular Progressista’’. Mas será que essa república tem mesmo alguma coisa de popular e progressista?


O Marxismo nos ensina que ao analisar qualquer situação, devemos partir da realidade objetiva e não subjetiva, que não podemos de forma alguma ser alguém que ‘’tenta agarrar um pardal com os olhos fechados’’(1) como dizia o Presidente Mao Tsetung. Em uma situação internacional cada vez mais complexa, onde as disputas interimperialistas por zonas de influência, matérias primas e mercados consumidores estão escalando para níveis não vistos no Século XXI, é de fato muito importante nos preservar de análises rasas e subjetivas dessas contradições.


Mapa do Sahel mostrando as datas de golpes militares a partir de 2020. Fonte: Portal La Razon
Mapa do Sahel mostrando as datas de golpes militares a partir de 2020. Fonte: Portal La Razon

A África é parte central nas disputas interimperialistas, e dela vem ganhando o noticiário uma região antes pouco falada: o Sahel. O Sahel é uma parte do continente africano que se localiza entre o Sahara e as savanas mais ao sul do continente africano, no qual fazem parte diversos países como Mali, Burkina Faso, Níger, Guiné, Chade, dentre outros. É uma região rica em diversos tipos de minério, com reservas enormes de ouro, urânio e petróleo, além de estar posicionada em uma posição estratégica do continente africano. A proposta deste texto é se ater a três países que estão em ebulição desde 2021: Burkina Faso, Mali e Níger.


Assim como todo o continente africano e boa parte da Ásia, o Sahel possui um passado de colonização, promovido especificamente pela França, que remonta desde o século XIX. Mesmo após o final da colonização formal entre as décadas de 1960 e 1970, a França ainda mantinha forte presença nos países do Sahel até o final de 2023. A presença francesa é em grande parte por conta do saque às riquezas naturais, principalmente do urânio. A França é líder em produção desta matriz energética e o Níger é atualmente o país com as maiores reservas do mundo. (2)


Esse processo de espoliação imperialista sempre foi marcado por diversos massacres, interferências nas políticas internas dos países e combate a qualquer luta democrática anti-imperialista que eclodiram no período. Foi a França inclusive, que junto a um general fascista de Burkina Faso, assassinou Thomas Isidore Sankara(3), além de ter apoiado diversos outros golpes reacionários em tais países. Desde 2015 houve um aumento significativo da atividade de grupos jihadistas como Estado Islâmico e Al-Qaeda no Sahel, promovendo muitas mortes, caos e instabilidade na região, o que fez o descontentamento com o imperialismo francês crescer entre a população extremamente pobre da região. No entanto, as recentes reviravoltas na política dos países do Sahel não se deram a um fator meramente popular.


Em 2021 houve um golpe militar liderado pelo general Assimi Goita que pôs fim ao regime de Ibrahim Boubacar Keïta, no Mali (4), que era alinhado com a França. Esse golpe militar possuiu profundo apoio da corporação privada de mercenários conhecida como ‘’Grupo Wagner’’(5), que desde sua criação tem profundos laços com o imperialismo russo. Esse movimento foi o primeiro de uma onda de golpes militares na região. Em 2022 ocorreu também em Burkina Faso, com os militares liderados por Ibrahim Traoré, e em 2023 o Níger com Abdourahamane Tchiani a cabeça. Todos eles com clara e aberta influência russa.


Se destacam em todos esses acontecimentos alguns pontos que merecem atenção: o golpe militar no Níger se deu com amplo apoio do Grupo Wagner, com milhares de militares e equipamentos pesados, que foram vitais para o sucesso da empreitada golpista. Em Burkina Faso atualmente há uma constante perseguição a minorias étnicas, principalmente a povos tribais que vivem em regiões fronteiriças, além de dezenas de desaparecimentos, assassinatos e a adoção de leis proibindo a homossexualidade. Para além disso, Traoré, logo após a vitória do golpe, viajou para a Rússia para se encontrar com Vladmir Putin e assinou diversos tratados que permitem aos russos o controle das minas de ouro e diamantes do país, demonstrando claramente o caráter vende pátria desse regime. Não é muito diferente da realidade do Mali, onde todos os protestos contra o golpe foram suprimidos rapidamente com mortes e tortura.


Em março de 2024 foi fundada por Burkina Faso, Mali e Níger a Aliança dos Estados do Sahel (AES), que nasceu com a tentativa de se contrapor às alianças de Estados africanos fomentadas pelo Ocidente e contava já em seu início com forte influência russa, que participou do primeiro encontro formal do grupo sendo representada pelo ministro das relações exteriores, Sergey Lavrov. No encontro de fundação foram firmadas diversas parcerias econômicas e militares com a Rússia e a condenação a um ‘’patrocínio ucraniano’’ aos jihadistas islâmicos que atuam no Sahel. A essa altura, os países da AES expulsaram as tropas francesas de seus territórios.


Sergey Lavrov com representantes dos paises da AES.
Sergey Lavrov com representantes dos paises da AES.

A menção à Guerra da Ucrânia é de suma importância, pois toda essa situação no Sahel reverbera neste conflito, pois ambos começaram a ocorrer quase que paralelamente e há impactos claros de um no outro. Desde o início da invasão russa a Ucrânia, estima-se que a Rússia tenha extraído US$2,5 bilhões somente em ouro do Sahel(6), saques que com certezas ajudaram a Rússia a superar as intensas sanções econômicas. Outro ponto importante é que a França tem tentado de todas as formas travar o avanço russo na região do Sahel, financiando novas tentativas de golpes (que no geral foram fracassadas até o dia da redação desta matéria) e também pressionando a União Europeia a sufocar cada vez mais Moscou na Ucrânia. O presidente francês Emmanuel Macron tem tomado um discurso belicoso e anti-russo muito forte desde que ficou clara a interferência do Kremlin no Sahel. Inclusive, uma semana após a fundação da AES, conclamou que a União Europeia deveria mandar tropas terrestres para lutar na Ucrânia.


Para além da Rússia, a China tem também marcado presença na região após todos esses eventos já citados, vendendo armas e exportando capitais para o Sahel. A China tem focado no Chade, onde nos últimos meses as tropas francesas também foram expulsas, e que há também presença dos russos. O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, reforçou o compromisso de Beijing em fornecer auxílio militar, prometendo US$ 136 milhões em equipamentos e treinamento para seis mil soldados e mil policiais em países africanos, que fazem parte da estratégia de Xi Jinping em sua ‘’Iniciativa Global de Segurança’’ lançada em 2022. (7)


Todas essas pugnas e interesses imperialistas arrastam o Sahel para uma crise política e econômica interminável, que coloca o povo em uma areia movediça entre diversas nações imperialistas e o Estado Islâmico. Devido a tudo que já foi explicitado, é impossível classificar esses recentes golpes militares em Burkina Faso, Mali e Níger como algo minimamente ‘’progressista’’. Qualquer análise que se baseie nas aparências ou nos discursos oficiais e não na realidade concreta e objetiva, não é marxismo, é liberalismo. Diversos processos ultra-reacionários foram levantados e mantidos pelas consignas de ‘’democracia’’, traficando com a luta revolucionária e até mesmo com a bandeira vermelha, processos por vezes autoproclamados por seus autores de ‘’Revolução’’.


Denunciar o imperialismo russo no Sahel é necessário pois é um dever com o povo que sofre naqueles países e também com a luta anti-imperialista. Não é trocando o senhor imperialista que as massas do Sahel serão libertadas, é com muita luta e maoísmo que irão poder libertar o Sahel e a África de todo o saqueio colonial secular que a extorque diariamente.


Notas:


  1. Reformemos o Nosso Estudo’’, Pte. Mao Tsetung, 1941.

  2. É no mínimo curioso que o país com maior reserva de urânio no mundo só tenha 18% da população com acesso a energia elétrica, segundo o monopólio de mídia CNN Portugal e instituições como o Banco de Desenvolvimento Africano e o portal Global Economy.

  3. Nacionalista que encabeçou um processo revolucionário em Burkina Faso que durou de 1983 a 1987 trazendo inúmeros avanços nos campos econômicos, políticos e sociais para o país.

  4. Houve dois golpes militares no Mali em sequência: o primeiro para depor Keita e o segundo para consolidar a liderança de Goita.

  5. O Grupo Wagner foi fundado por Yevgeny Prigojin como uma ‘’empresa militar privada’’ que sempre teve profundos laços com o imperialismo russo, atuando em diversos conflitos no Oriente Médio. No início de 2023, Prigojin promoveu uma tentativa fracassada de rebelião contra o presidente Vladimir Putin e morreu após seu helicóptero cair. Após a morte de seu líder o Grupo Wagner foi assumido de vez pelo ministério de segurança russo e mudou a seu nome e lógica de atuação. Agora o ‘’Afrika Corps’’ se encarrega de atuar de uma forma mais sutil, para desestabilizar os países onde a Rússia tem interesses. Também mudaram sua área de atuação, claramente se dedicando mais a África.

  6. Relatório do Blood Gold Report. O Blood Gold Report refere-se a relatórios que investigam a relação entre a extração ilegal de ouro, a lavagem de dinheiro e o financiamento de conflitos, especialmente em países da África. O termo "ouro de sangue" descreve ouro extraído em áreas de conflito ou por meio de trabalho escravo, que é então usado para financiar atividades ilegais.

  7. Lançada em 2022, busca oferecer soluções multilaterais para conflitos sem interferência direta.

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