Carga, comida e mais o quê?
- Igor Mendes
- há 18 minutos
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Por volta de meio dia, o helicóptero da TV Globo capta uma cena inusitada: centenas de pessoas saqueiam um caminhão de carne que fora roubado perto do complexo de favelas da Pedreira, um dos lugares mais violentos da capital fluminense. Um Caveirão da Polícia Militar tenta emparedá-las; policiais jogam spray de pimenta contra a pequena multidão, em vão. As pessoas se afastam momentaneamente mas logo retomam o sentido das caixas cheias de carnes, uma propriedade que os homens armados do Estado não são mais capazes de proteger.
Supomos que aquele carregamento possua seguro. A mercadoria estará, seja como for, protegida, o custo de proteção embutido no preço final. Preço final que é inacessível para a maioria da população trabalhadora, como aquela que cerca o caminhão na Pedreira. Ninguém mais indaga como foi a ação, quantos suspeitos participaram do assalto, porque perante todos se impõe a imagem chocante, senão da fome, da exclusão. Pois se, do ponto de vista comercial, a mercadoria está segurada, para aqueles que apareceram na TV os pacotes não são um mero valor de troca, mas a possibilidade de usufruir, sob risco, de um mísero quinhão de algo que o Brasil exporta ao mundo inteiro, mas nega ao seu próprio povo.
Entre a carne e as gentes, o Caveirão. Em primeiro lugar, vimos a banalidade com que ele é tratado pelos moradores da Pedreira –isso valeria decerto para Costa Barros, Chapadão e qualquer um desses complexos onde o filho chora e a lei não vê –, como se fosse parte da paisagem, porque de fato é. Falamos acima de cena inusitada, porque o que o helicóptero esperava filmar eram barricadas, bocas de fumo, corpos negros aprisionados, trocas de tiros, mortes. Assistir a isto, para as classes médias; conviver com isto, para os que vivem sob o infortúnio permanente, já não choca, não estarrece. Estamos todos afinal um tanto brutalizados, alguns mais, outros menos. Mas o retrato nu da luta por um pedaço de carne crua ainda é algo com o que não estamos tão acostumados, não porque a fome não seja uma realidade atroz da nossa sociedade, mas porque ela acomete indivíduos que perambulam pelas ruas, invisibilizados, frente os quais é fácil simplesmente decidir virar o rosto. Mas um coletivo de gente que avança, estando sob a mira de armas de guerra, filmada no instante mais crítico da ação, é força que não pode ser ignorada. Ainda sobre o Caveirão, vimos como o excesso de força é aqui a própria anulação da força: sendo arma de guerra, ele serve para matar, absolutamente inútil se aos seus operadores é negada a possibilidade de abrir fogo. A pequena multidão não recuou, porque a luta pela sobrevivência também ensina a calcular com objetividade o preço da própria pele.
A verdadeira violência contida nessa cena não é, portanto, a carga saqueada; nem o anterior roubo do caminhão ou mesmo a presença ostensiva de policiais apontando as armas de guerra contra a população civil. A violência original reside no fato de que para milhares e milhões de brasileiros a satisfação de uma necessidade básica só pode ser realizada se o caminhão tombar. A manutenção desse status quo é a causa primária, a violência fundante, que reclama a existência do seguro, do Caveirão, das forças paramilitares e do próprio sensacionalismo sobre o tema da violência. Contra ela, a fúria popular é tão somente legítima autodefesa.