Ela e Morada
- Daniela Picchiai
- há 5 dias
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Seria o acaso que faz duas gotas diferentes caírem no mesmo lugar? Seriam duas gotas tão diferentes a ponto de não poderem cair no mesmo lugar? Ela e Morada, dois textos escritos em tempos diferentes, mas que se aproximam na forma e no sentir dela e da casa.
Ela
A vida começa. Os pais, o filho e ela. A primeira infância é lembrada. O filho com 6, ela com 4. Carrinhos pela casa. Bonecas organizadas no quarto. Bermuda suja. Vestidinho rosa bem passado. O filho corre. Ela, orientada a sentar direitinho. Você tem que se portar como uma garota. Com 10, o filho no videogame, na rua, jogando taco, com os amigos. Ela ajudava nas coisas da casa, tirava o lixo, lavava a louça e arrumava as camas. Enquanto os pais transavam. Nove meses depois. A filha. Bebê pequeno. Adorada. Amada. Como um bebê, chora. Ela nina. Caga. Ela limpa. Quer brincar, ela arruma a diversão. Os pais. Comem. Bebem. Fumam. Conversam com o filho. Já adolescente. Enquanto ela permanece com a filha. Época de festa. Ela, presenteada com roupas e cremes para o cabelo. Meninas tem que se cuidar. O filho, com grana. Viagem de férias. Ela, educada. Fala baixo. Sorri discretamente. Não chama atenção. O filho, com 18. Uma criança ainda. Um menino. Gostava de som alto. Carro novo. Cavalinho de pau. Paqueras. Baseados. Meninas amadurecem mais rápido que meninos. Ela cuidava da filha. Também variava entre escola e casa. Ele, muito jovem. Uma. Duas. Três faculdades. Não sabia o que fazer da vida. A filha com 6. Ela, na internet. No chat. Uma abertura para o mundo. No globo. O marido. Os pais. Detestavam o marido. Talvez ela também. O ser do globo. Feirante. Ciumento. Religioso. Possessivo. Preto. Você merece algo melhor do que esse moreninho. Ela, entre tudo isso, enxergava a brecha. Os pais desejavam dedicação exclusiva. Ela foge. O marido aceita. Os pais, deserdam. Ela, sem escola, sem filha. Madrugava para feira. Gostava de chupar tangerina. Os feirantes afirmavam: você come muito para uma mulher. Aos domingos. Na igreja. O pastor a escutava. Também anunciava. Fora camisinha. Rumo à nova família. O marido não permitia roupa curta e maquiagem no rosto. Ela, empenhada. Cuida da casa. E, sem demora, três crianças. O marido. Busca o sustento. Os anos passam. Seis crianças. Ela relata abuso. As crianças. Desmentem. Deve estar naqueles dias. Ela já não vai mais a feira. O marido. Dobra o turno. Ela, no telefone com o pastor, relata agressão. Do marido. O reverendo discursa a favor da família. Os pais. Morrem. A filha. Chora. O filho. Cuida do velório. Ela. Não chora. Nem comparece ao enterro. Mulher louca. Ela diz que o vizinho invadiu sua casa. Então, não sai mais de casa. No celular. Pede ajuda para polícia. As crianças. Conseguem impedir. O marido. Liga para o filho. Pede ajuda. Juntos tiram o celular dela. Ela não derruba uma lágrima. Vai até o portão. Xinga o vizinho. O pastor, o marido, as crianças, a filha e o filho, juntos afirmam. Ela precisa ser interditada.
Morada
Era no carnaval que a calmaria aparecia. Os donos, na rua, o espaço, todo dela. Nesses momentos, sem muitas palavras, era possível admirar os movimentos leves e lentos das baratas, formigas, aranhas e plantas. O pós-carnaval era sempre meio estranho, triste, tenso, cansado, ainda assim, era possível uma tranquilidade durante as tardes, mas nesse ano foi diferente. Os donos não saiam mais, o espaço foi sendo ocupado pelas bagunças, falas, músicas e televisão. As baratas se escondiam, as formigas sumiram e as plantas reclamavam do excesso de água. Enquanto ela tentava lidar com toda aquela estranha movimentação diária. Com azar, dias como esses aconteciam quando estava chovendo muito, ainda assim, eram raros. Agora, apenas as visitas e os sapatos eram proibidos de entrar em seu interior. Mas não foi só isso que mudou em sua rotina, se antes ficava enjoada por causa da poeira, agora, o cheiro e o sabor do álcool 70 a reviravam. E foi assim que dois meses se passaram. Em uma manhã de sol, a caixinha de entrada estava cheia, os donos falavam muito sobre uma grande obra que seria vizinha. A obra, a essa altura, já estava acontecendo dentro dela, o que seria pior? Teve então uma nova sensação, o arrepio com os guindastes passando pela rua carregando em suas costas enormes tratores. Nesse momento, uma pequena oscilação aconteceu em sua base, gerando o arrepio. Ninguém sentiu, somente ela. Poucos dias depois, as primas vizinhas começam a ser abocanhadas pelos tratores, e parte dos seus corpos eram jogadas no dorso do enorme caminhão. Triste pelas primas, ela não conseguiu nem viver o luto, o enjoo do álcool se misturava com a turbulência em sua base. Ao longo dos dias seguintes, a agitação de homens falando ao seu redor pressionavam seu corpo. Junto com o grande empreendimento, a vizinha lateral resolveu fazer manutenção em sua cobertura. Foi entre essas duas obras que ela foi trincando aos poucos suas estruturas. Eram pequenos detalhes, os donos sequer percebiam, só se atentavam para a poeira, então a mantinham toda fechada. A tensão entre os ruídos, a sujeira e a necessidade de mantê-la toda fechada fez com que os donos resolvessem passar uns dias em outra cidade. E a deixaram. Na tentativa de encontrar novamente a calmaria, ela procurou pelas baratas, formigas e aranhas, mas elas já não estavam mais lá. Talvez tanta movimentação as tenha espantado. Sozinha, sem donos, sem as primas e com a brutalidade tomando conta de todo seu exterior, a Casa só desejou ter uma casa para se aconchegar.