A tragédia da TELESP
- Yuri Chamma
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A série “As tragédias” busca recuperar de forma concisa a memória das empresas públicas que marcaram a história econômica e social de São Paulo e que, ao serem entregues ao capital privado, deixaram um rastro de impactos duradouros sobre trabalhadores, serviços essenciais e o desenvolvimento do estado. A cada semana, apresentamos um novo capítulo dessa história, destacando o papel original dessas instituições, o processo político que levou à sua venda e as consequências concretas que recaíram sobre os trabalhadores paulistas. Mais do que revisitar o passado, a série pretende oferecer elementos para compreender como as privatizações moldaram e seguem influenciando a vida cotidiana, contribuindo para o debate sobre patrimônio coletivo, soberania e o futuro dos serviços públicos em São Paulo.
A privatização da Telecomunicações de São Paulo S.A. (TELESP) costuma ser apresentada como a passagem de um modelo “ineficiente” e “atrasado” para um sistema moderno, dinâmico e eficiente. Essa narrativa esconde duas mistificações centrais: a primeira, de que o Estado burguês operaria naturalmente em favor do interesse coletivo; a segunda, de que a privatização representaria um avanço técnico neutro. A tragédia da TELESP não está na simples substituição do “público” pelo “privado”, mas na resolução unilateral de uma contradição em favor do capital, transformando um setor estratégico, de campo de disputa social, em mercadoria submetida integralmente à lógica do lucro.
Antes da privatização, a TELESP integrava o Sistema Telebrás e operava sob propriedade estatal, o que não significava controle popular nem gestão proletária. A empresa funcionava dentro da lógica capitalista de uma empresa estatal, subordinado aos interesses da burguesia industrial, financeira e, progressivamente, ao capital internacional. Suas decisões estratégicas não escapavam a essa estrutura de classe. Ainda assim, sua condição estatal criava uma contradição material relevante, onde a comunicação não era organizada exclusivamente segundo o critério da rentabilidade imediata.
Essa contradição se expressava de forma concreta quando analisamos que a TELESP era obrigada a cumprir metas de expansão territorial, atender regiões pouco lucrativas, praticar tarifas reguladas e operar subsídios cruzados, mecanismos pelos quais setores mais ricos financiavam parcialmente o acesso nas periferias e no interior. Entre 1990 e 1997, mesmo sob forte restrição orçamentária imposta deliberadamente nos anos finais antes da privatização, o número de linhas telefônicas no Brasil cresceu de cerca de 10 para mais de 17 milhões, com São Paulo concentrando parcela significativa dessa expansão, segundo dados do Ministério das Comunicações e da própria Telebrás.
As longas filas por linhas telefônicas, frequentemente usadas como prova do “fracasso estatal”, eram menos resultado de incapacidade técnica e mais consequência da demanda reprimida acumulada, da explosão urbana e da contenção consciente de investimentos num contexto de preparação política da privatização, como apontam estudos do IPEA. Ou seja, havia limites reais, mas também havia planejamento, horizonte de longo prazo e uma infraestrutura construída com recursos públicos que respondia, ainda que de forma contraditória, a objetivos sociais mais amplos.
Em 1998, como parte do Programa Nacional de Desestatização (PND), o governo Fernando Henrique Cardoso, desmembrou e privatizou a TELESP. O controle da maior parte de sua estrutura passou ao grupo espanhol Telefónica, por aproximadamente US$ 5,8 bilhões, valor que incluía infraestrutura construída ao longo de décadas com recursos públicos. A operação foi acompanhada por reformas institucionais, como a criação da ANATEL, e pela promessa de que a concorrência privada garantiria universalização, queda de tarifas e melhoria dos serviços.
De fato, nos anos seguintes houve um crescimento explosivo do número de acessos telefônicos, sobretudo com a popularização da telefonia móvel, Entre 1998 e 2005, o total de linhas telefônicas no Brasil saltou de cerca de 23 milhões para mais de 140 milhões, impulsionado sobretudo pela telefonia móvel. Essa expansão, porém, não pode ser atribuída mecanicamente à privatização. Ela foi impulsionada por transformações tecnológicas globais: digitalização das redes, redução do custo dos equipamentos e difusão do modelo pré-pago. Fenômenos que ocorreram também em países que mantiveram forte controle estatal sobre suas telecomunicações. O discurso da “eficiência privada” esconde que a base material dessa expansão foi a infraestrutura construída anteriormente com recursos públicos. Mais de 90% da rede fixa utilizada nos primeiros anos pós-privatização havia sido construída antes de 1998, conforme auditorias técnicas do próprio setor. A privatização não criou a rede, meramente apropriou-se dela e reorganizou seu uso segundo critérios estritamente mercantis.
A mudança decisiva introduzida pela privatização não foi técnica, mas social. A comunicação deixou de ser tratada como serviço submetido a objetivos públicos e passou a operar como pura mercadoria. A criação da assinatura básica da telefonia fixa, que era inexistente antes da privatização, simboliza esse deslocamento. O trabalhador passou a pagar para “ter acesso” à rede, independentemente do uso. Em 2001, a assinatura básica já representava cerca de 40% do valor da conta telefônica média, segundo estudos do DIEESE.
Dados da ANATEL e do DIEESE mostram que, ao longo dos anos 2000, o Brasil consolidou-se entre os países com serviços de telefonia e internet mais caros do mundo quando comparados à renda média da população, chegando a consumir até 5% da renda mensal de famílias de baixa renda, de acordo com levantamentos do IBGE e da UITA. Em 2006, mais de 70% dos investimentos em telecomunicações estavam concentrados em regiões metropolitanas, a lógica do subsídio cruzado foi desmontada, e os investimentos passaram a se concentrar onde a rentabilidade era maior, aprofundando desigualdades territoriais e sociais.
No mundo do trabalho, a privatização significou destruição de empregos estáveis, terceirização em massa, fragmentação sindical e precarização. A antiga força de trabalho da TELESP — organizada, concursada e com direitos — foi substituída por trabalhadores terceirizados, submetidos a metas abusivas, baixos salários e alta rotatividade, conforme documentado por estudos do DIEESE e denúncias recorrentes dos sindicatos do setor. Em 2003, mais de 60% da força de trabalho do setor de telecomunicações já era terceirizada, com salários até 50% menores, alta rotatividade e índices elevados de acidentes de trabalho. Além disso, a prometida concorrência revelou-se limitada. O que se consolidou foi um oligopólio privado, dominado por quatro empresas que concentram mais de 90% do mercado nacional. A capacidade do Estado de planejar o setor de telecomunicações de forma integrada ao desenvolvimento nacional foi severamente reduzida, e o país tornou-se dependente de decisões empresariais tomadas fora de seu território.
A tragédia da TELESP não pode ser compreendida como a simples perda de um “bem coletivo”. A estatização, por si só, não rompe com a estrutura de produção capitalista, pelo contrário, sem a tomada de poder, ela tende a operar os mesmos interesses privados fantasiados de interesse público. O erro está em tratar o estatal como sinônimo de coletivo, apagando o caráter de classe do Estado. No entanto, reconhecer esse limite e o próprio caráter do Estado burguês como balcão de negócios da burguesia, não equivale a relativizar a privatização. O que foi destruído em 1998 não foi apenas uma empresa estatal, mas um instrumento de mediação que permitia a disputa política, planejamento de longo prazo e a arrancada de conquistas materiais para as classes trabalhadoras. A privatização resolveu essa contradição de forma definitiva em favor do capital, eliminando qualquer obrigação estrutural de atendimento social.
A tragédia da TELESP não se mede apenas pelo número de linhas instaladas ou pelo preço do serviço, mas pela transformação estrutural da comunicação em mercadoria, pela precarização do trabalho e pela perda de soberania sobre um setor estratégico. Defender simplesmente a reestatização, sem enfrentar o problema do poder, é insuficiente. Mas aceitar a privatização como “inevitável” ou “natural” para o desenvolvimento é capitular diante de interesses privados.
A lição histórica da TELESP é clara: enquanto setores estratégicos permanecerem fora do controle efetivo das massas, seguirão operando contra elas, seja sob forma privada, seja sob forma estatal-burguesa. A superação real dessa tragédia exige não apenas recuperar o que foi privatizado, mas submeter a infraestrutura de comunicação ao controle popular, rompendo com a lógica do lucro e a colocando a serviço das necessidades do povo trabalhador.






