Em que sentido se deve falar em Soberania?
- Gabriel Campos
- há 6 horas
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Diante das constantes ameaças que o Imperialismo proclama hoje em todos os continentes, uma palavra de ordem ascende de alguns cantos, a de “Soberania Nacional”. Ela transcorre uma ampla gama de grupos, uns à esquerda e outros à direita, que em seu nome reivindicam diferentes programas nas nações oprimidas, o que levanta o questionamento sobre seu real significado para o ponto de vista antiimperialista e para o ponto de vista proletário, da libertação dos povos e da derrubada do modo de produção capitalista em sua fase imperialista.
Soberania do Povo
Primeiro analisemos as relações de soberania no interior da Nação. Em sua brochura sobre os Princípios da Filosofia do Direito de Hegel publicada nos Anais Franco-alemães, sob o título de Crítica à filosofia do Direito de Hegel, em que umas das seções é intitulada “O Poder Soberano”, Marx destrincha o processo de mistificação próprios do Estado Moderno, expresso nas ideias de Hegel, para o caso do Soberano. Ele demonstra que o mesmo processo de reificação e inversão que paira sobre o Estado paira sobre a noção de soberania do Estado e soberania do povo. Vejamos como isso aparece na análise que ele e Engels fazem do processo revolucionário alemão durante o período que ficou conhecido como primavera dos povos. Em 31 de maio de 1848, Engels escreve:
“Por uma quinzena a Alemanha teve uma Assembleia Nacional constituinte eleita pelo povo alemão como um todo.
O povo alemão ganhou seu status soberano lutando nas ruas de quase todas as cidades no país, grande e pequena, e especialmente nas barricadas de Vienna e Berlim. Ele exerceu essa soberania nas eleições da Assembleia Nacional.
A ousada e pública proclamação de soberania do povo alemão deveria ter sido o primeiro ato da Assembleia Nacional.
Seu segundo ato deveria ter sido a escrita de uma constituição alemã baseada na soberania do povo e a eliminação das condições realmente existentes na Alemanha de tudo que entre em conflito com seus princípios.
Durante toda sua sessão a Assembleia haveria de ter tomado todas as medidas para frustrar qualquer intentos reacionários, para manter a base revolucionária da qual depende e para salvaguardar a soberania do povo, conquistada pela revolução, contra todos os ataques.”1 (Tradução Livre. Grifo nosso.)
Aqui aparece a contradição entre o Estado e o povo. O Estado se põe a “representar”, enquanto “vontade pública” ou “poder público”, chegando a instituir uma “força pública” para “defendê-los”. A soberania do povo aparece se realizando na luta por impor seus interesses, aparece como uma conquista do processo revolucionário democrático que estava em curso, ainda que cesse com o seu interrompimento pela burguesia liberal, conciliadora e impotente frente ao poder monárquico. Ali, a “a soberania pela graça de Deus foi de modo algum varrida pela soberania do povo como resultado da Revolução de Março. A Coroa, o Estado absoluto, foi meramente levado a chegar em um acordo com a burguesia, sua antiga rival”2, transformando o antigo regime em uma monarquia constitucional, em que a Burguesia conspira com o Rei e o Rei conspira com a Burguesia contra a soberania do povo, do proletariado das grandes cidades e do campesinato dos distritos agrícolas alemães.3 Em 8 de novembro de 1948, Marx escreve “Crise em Berlim”:
“A situação parece bem complicada, mas é bem simples.
O Rei, como a Nova Gazeta Renana (Neue Preussische Zeitung) corretamente aponta, se posiciona “no fundamento genérico” de seu direito “divino hereditário”. Do outro lado, a Assembleia Nacional não tem qualquer fundamento, seu propósito sendo constituir, lançar o fundamento.
Dois poderes soberanos.
O elo de conexão entre os dois é a Camphausen, e a teoria do acordo.
Quando esses dois poderes soberanos não conseguem mais acordar ou não querem fazê-lo, eles se tornam poderes soberanos inimigos. O rei tem o direito de descer a manopla (throw down the gauntlet) sobre a Assembleia, a Assembleia tem o direito de descer a manopla sobre o Rei. O direito maior está do lado do maior poder. O poder é testado em luta. O teste da luta é a vitória. Cada poder dos dois pode provar que é certo apenas pela sua vitória, que é errado apenas pela sua derrota. […]]
O direito está do lado do poder. [...]”4 (Tradução Livre. Grifo Nosso)
A soberania aparece como capacidade de exercer o poder, de realizar, nas palavras de Hegel, sua “vontade efetiva”, e este poder se estabelece na luta entre as duas instituições que buscam exercer sua vontade à revelia da vontade da outra, quando se rompe o compromisso entre a Assembleia e o Rei, como um fenômeno interno ao Estado – a forma como é velada a contradição nesse momento de supressão da soberania do povo. E esta é expressa por meio do direito, a “constitucionalidade”, que é a forma como o status se consolida, na criação de leis.
Mas a soberania da nação e do Estado, aqui a soberania da Assembleia Nacional e da Coroa, são soberania à medida que são modo de existência da soberania popular reificada. A soberania do povo aparece sem potência e representada no Estado-Nação, determinada e subjugada pela soberania do Estado, aparecendo como autodeterminação (determinação de si mesmo) deste. Até o momento que ela se realiza frente a ele, pela luta por exercê-la através do poder, ou melhor, por tomar o poder e exercê-la pelos ditames de uma ditadura sobre àqueles que ditavam sobre ela, como foi com o I ato da Revolução de Março comentado por Engels.
Soberania Nacional
Primeiramente, falar em soberania nos termos previamente estabelecidos pressupõe a independência política de um país, para que a autodeterminação de seu povo se realize, ainda que sob domínio indireto de outros países com base na dependência econômica. A palavra de ordem de Soberania “pura” é a palavra de ordem anticolonial, na qual uma nação ainda não conquistou o status propriamente de nação e não conformou seu Estado. Apesar dos erros da FLN e de seu partido-frente, na defesa de seu programa, Fanon proclamava: “A soberania é una e indivisível: nossa posição a esse respeito é inabalável, porque nasce do próprio exercício dessa soberania.”5 A garantia da soberania é um “processo revolucionário […] irreversível e inexorável”6 de impor a soberania por meio da violência revolucionária sobre o poder colonial. Portanto, só se pode falar de inexistência de soberania sobre esses termos, da condição de colônia. Fora isso, corre-se no erro de substituir “a questão da autodeterminação política das nações na sociedade burguesa, da sua independência estatal, pela questão da sua autonomia e independência econômicas.”7
Segundo: então, em que medida se deve defender a “Soberania Nacional”, se em tese desejamos a soberania do povo?
“Se o príncipe é a “soberania real do Estado”, então “o príncipe” pode, também externamente, valer como o “Estado autônomo”, mesmo sem o povo. Mas se ele é soberano porque representa a unidade do povo, então ele é apenas representante, símbolo da soberania popular. A soberania popular não existe por meio dele, mas ele por meio dela.”8
A possibilidade de não superar o invólucro místico da reificação reside na crença permanente de que “a substância mística se torna sujeito real e o sujeito real aparece como um outro, como um momento da Substância mística”9, isto é, a Soberania popular aparece como momento da Soberania do Estado ou da Nação10, e não o contrário.
A Soberania do Estado, enquanto idealismo, aparece autodeterminada, esconde que na realidade é determinada pelas relações sociais, pelas classes, pela contínua possibilidade de subversão das massas em de fato garantir a “integridade territorial”, isto é, a autodeterminação real, do povo. A verdadeira Soberania é escondida por debaixo da falsa soberania que se impõe sobre ela, “ainda que uma falsidade existente”11; é “forma que falsifica o conteúdo”12. A reafirmação dessa inversão cai ou acaba caindo em capitulacionismo, como foi o caso da Alemanha. Frente a isso, valem as palavras de Marx: “O Estado é o abstractum. Somente o povo é o concrectum”.13
Quando o povo exerce sua soberania ele a revela como possibilidade, mas igualmente realiza a soberania do Estado, dá a ela um momento de concretude frente a constante idealidade que a constitui. A guerra ou “urgência” destravam esta situação, porque impõe a necessidade de ação organizada dos povos oprimidos frente a agressão, estabelece um novo status quo, ao mesmo tempo que revela seus fundamentos, isto é, transparece a natureza de classe, sua constituição contraditória e em luta.
Por exemplo, Mao fala de soberania nacional na iminência e durante toda o período da Invasão Japonesa apenas quando politicamente se torna insustentável Tchiang Kai-Chek não recuar de suas posições na guerra civil, cessar os ataques ao Exército Vermelho e resistir à invasão japonesa formando uma Frente Única com os comunistas.
E isto é, quando as ideias populares no seio do povo se tornam tão fortes a ponto de garantir a hegemonia popular, dirigida pelas forças proletárias, na Unidade Nacional com o Kuommitang. Isto é o que leva Mao a falar da “soberania” e “integridade territorial” da China, de “direitos de soberania” do país, ao mesmo tempo em que delimita o ponto de vista proletário, e a sua diferença entre os objetivos e a natureza dos interesses proletários do da burguesia (que fazem dela vacilante) ainda que em unidade com ela. Fala-se em soberania nacional quando se fala na força do povo na guerra de libertação, já que o contrário seria apenas legitimar o poder da Burguesia, das forças reacionárias e do Estado, já que legalmente eles são a Nação e controlam o território.
A situação contrária, de caráter capitulacionista de classe14, seria justamente o caso da formação da Frente com o Kuommitang em 1927, que acabou na execução de grande parte do exército vermelho pelas tropas de Tchiang Kai-Chek:
“A revolução em 1927 fracassou sobretudo porque, na altura, a linha oportunista no Partido Comunista impediu que expandíssemos as nossas filas (expandíssemos o movimento dos operários e camponeses, bem como as forças armadas dirigidas pelo Partido Comunista), confiando-se unicamente num aliado temporário, o Kuomintang. Como resultado, o imperialismo deu ordens aos seus lacaios, a classe dos déspotas e nobres e a classe dos compradores, para que usassem toda a sorte de embustes a fim de at-rair primeiramente Tchiang Kai-chek e, depois, Uam Tsim-vei, liquidando desse modo a revolução. A Frente Única revolucionária daquele tempo não tinha um eixo principal, nem forças armadas revolucionárias firmes e poderosas: quando se verificaram defecções por todos os lados, o Partido Comunista, forçado a lutar isolado, foi impotente para aguentar a táctica de liquidação um a um adoptada pelos imperialistas e pela contra-revolução chinesa. É certo que havia um exército sob o comando de Ho Lom e Ie Tim, mas ainda não era um corpo politicamente consolidado e, como além de tudo isso o Partido não sabia dirigi-lo, esse exército acabou por ser derrotado.”15
Por que pode existir o poder vermelho na Frente Única Anti-japonesa? Porque as áreas vermelhas foram consolidadas, a direção sobre o campesinato e o proletariado foi conquistada pela vanguarda proletária, o sentimento geral da nação favoreceu a posição de defesa da soberania popular e garantiu, por consequência, a soberania nacional pela Frente Única, se prevenindo contra a capitulação ao aplicar o “princípio de independência e autonomia” na Frente e na atuação do Exército.
“Apoiar uma guerra prolongada graças a uma cooperação durável ou, noutras palavras, subordinar a luta de classes a luta nacional anti-japonesa atual, constitui o princípio básico da Frente Única. Mas, respeitando esse princípio, importa conservar o caráter independente dos partidos e das classes, a sua independência e a sua autonomia no seio da Frente Única; não se deve, em nome da cooperação e da unidade, sacrificar os direitos essenciais destes, havendo pelo contrário que mantê-los firmemente, dentro de certos limites; só assim se pode promover a cooperação e torná-la real. Doutro modo, a cooperação converte-se em amálgama e a Frente Única resulta fatalmente sacrificada. Na luta contra um inimigo nacional, a luta das classes assume forma de luta nacional, nisso se manifestando a identidade dessas duas lutas. Por um lado, para dado período histórico, as reivindicações políticas e económicas das diversas classes só são admitidas na medida em que não conduzem a ruptura da cooperação e, por outro lado, as necessidades da luta nacional (resistência ao Japão) constituem o ponto de partida de todas as reivindicações nessa luta de classes. Assim, existe identidade entre a unidade e a independência e entre a luta nacional e a luta de classes, no próprio seio da Frente Única.”16
Mao e o PCCh proclamam a soberania nacional quando assumir a identidade entre soberania popular e soberania nacional (a identidade entre luta de classes e luta nacional) não compromete a posição proletária (colocando a nação acima dela) - não ofusca a linha de classe - na capacidade de dirigir o processo revolucionário e garante o processo ininterrupto da revolução, da libertação nacional e da revolução democrática até a ditadura do proletariado em direção ao comunismo.
Isto é, de nada adiante proclamar a Soberania do Estado e da Nação sem que se faça da soberania popular um objetivo, sem que se proclame que a Unidade Nacional só pode prevalecer frente a agressão com o exercício constante dos povos por se rebelar, por instaurar a direção, no sentido de guia e objetivo, da classe proletária.
1Friedrich Engels, The Assembly at Frankfurt. https://www.marxists.org/archive/marx/works/1848/06/01b.htm
2Karl Marx, The Bourgeoisie and The Couter-Revolution. https://www.marxists.org/archive/marx/works/1848/12/15.htm
3Karl Marx, The Trial of The Rhenish District Committee of Democrats. https://www.marxists.org/archive/marx/works/1849/02/25.htm
4 Karl Marx, The Crisis in Berlin. (https://www.marxists.org/archive/marx/works/1848/11/08.htm)
5Frantz Fanon, Independência da Argélia, a realidade de todos os dias. El Moudjahid, n.. 8, 5 de agosto de 1957.
6Frantz Fanon, Independência nacional, a única solução possível. El Moudjahid, n.. 8, 5 de agosto de 1957.
7“Rosa Luxemburgo substituiu a questão da autodeterminação política das nações na sociedade burguesa, da sua independência estatal, pela questão da sua autonomia e independência económicas. Isto é tão inteligente como se uma pessoa, ao debater a reivindicação programática da supremacia do parlamento, isto é, da assembleia dos representantes do povo, num Estado burguês, se pusesse a expor a sua convicção plenamente justa da supremacia do grande capital sob qualquer regime num país burguês.” V. I. Lênin, Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação. (https://www.marxists.org/portugues/lenin/1914/auto/cap01.htm) E isto é também ofuscar as diferenças entre a condição de colônia ou semicolônia, tal como faz o jornal A Nova Democracia, e perder de vista as condições sobre as quais se ergue um processo revolucionário.
8Karl Marx, Críticas à filosofia do Direito de Hegel. p. 54
9 Ibid. p. 50.
10 “Assim, a soberania, a essência do Estado, é aqui, primeiramente, considerada como uma essência autônoma, é objetivada. Depois, compreende-se esse objeto deve se tornar novamente sujeito. Mas, então, esse sujeito aparece como uma autoencarnação da soberania, enquanto que a soberania não é outra coisa senão o espírito objetivado dos sujeitos do Estado.” Ibid. p. 50.
11 Ibid. p. 55
12Ibid. p. 56
13Ibid. p. 54
14Que é, por consequência, capitulacionismo nacional: “No fundo, o capitulacionismo de classe é a reserva que alimenta o capitulacionismo nacional na guerra revolucionária nacional contra o Japão. Essa é a tendência mais prejudicial, favorece o campo da ala direita e encaminha a guerra para a derrota. Para garantir a libertação da nação chinesa, a emancipação das massas trabalhadoras da China e intensificar a luta contra o capitulacionismo nacional, devemos combater o capitulacionismo de classe no seio do Partido Comunista e entre o proletariado, estendendo esse combate a todos os domínios do nosso trabalho.” Mao Tsetung, A Situação e as Tarefas da Guerra de Resistência Contra o Japão Após a Queda de Xangai e Tai-iuan. (https://www.marxists.org/portugues/mao/1937/11/12.htm#i5)
15Mao Tsetung, Sobre a Táctica na Luta Contra o Imperialismo Japonês. (https://www.marxists.org/portugues/mao/1935/12/27.htm)
16Mao Tsetung, A Questão da Independência e Autonomia no Seio da Frente Única. (https://www.marxists.org/portugues/mao/1938/11/05.htm)