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Graciliano Ramos: escritor e homem de partido

Texto publicado em fevereiro-março de 2018 e republicado em 27 de outubro de 2025 na ocasião de 133 anos desde o nascimento de Graciliano Ramos.



Retrato de Graciliano Ramos feito por Portinari.
Retrato de Graciliano Ramos feito por Portinari.

Autorretrato aos 56 anos


Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.

Casado duas vezes, tem sete filhos.

Altura 1,75.

Sapato n°41

Colarinho n°39.

Prefere não andar.

Não gosta de vizinhos.

Detesta rádio, telefone e campainhas.

Tem horror às pessoas que falam alto.

Usa óculos. Meio calvo.

Não tem preferência por nenhuma comida.

Não gosta de frutas nem de doces.

Indiferente à música.

Sua leitura predileta: a Bíblia.

Escreveu Caetés com 34 anos de idade.

Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.

Gosta de beber aguardente.

É ateu.

Indiferente à Academia.

Odeia a burguesia.

Adora crianças.

Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

Gosta de palavrões escritos e falados.

Deseja a morte do capitalismo.

Escreveu seus livros pela manhã.

Fuma cigarros Selma (três maços por dia).

É inspetor de ensino, trabalha no “Correio da Manhã”.

Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.

Só tem cinco ternos de roupa, estragados.

Refaz seus romances várias vezes.

Esteve preso duas vezes.

É-lhe indiferente estar preso ou solto.

Escreve à mão.

Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.

Tem poucas dívidas.

Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas.

Espera morrer com 57 anos.



Introdução


O jeito é o homem, como se diz. Temos, naquele “Autorretrato”, a figura exata do escritor seco, sarcástico, impiedoso, cuja pena não ameniza essas características nem ao falar de si mesmo. Este homem, Graciliano Ramos, é o nosso grande escritor, depois de Machado de Assis. Da sua lavra nasceram obras imortais da literatura brasileira, obras que souberam arrancar, com seu “realismo sóbrio”i, todas as máscaras das velhas e persistentes relações de opressão em que se via (ainda se vê) mergulhado o nosso povo. Pelo menos duas delas - “Vidas Secas” e “Memórias do Cárcere” -, conjugam, em rara correspondência, o libelo implacável contra a ordem vigente com um assombroso valor estético, constituindo-se, por isso mesmo, como um passo a frente na cadeia geral do progresso da literatura mundial.


Por que escrever sobre Graciliano Ramos? Em primeiro lugar, porque, de toda uma geração que mudou a fisionomia do romance brasileiro – o chamado romance social nordestino das décadas de 1930 e 1940 – ele foi o nome mais destacado, que bebeu nas fontes comuns dos demais, mas se sobressaiu sobre elesii. Em segundo lugar, porque, nos meios literários, Graciliano é aclamado com uma copiosa bibliografia, que exalta o valor estético indiscutível dos seus escritos, mas silencia, quando não nega, o seu espírito revolucionário. Aceitam a obra, mas rejeitam a fornalha em que foi feita, talvez por considerarem inadmissível que o maior nome das nossas letras no século XX tenha sido comunistaiii.


Ainda antes da passagem pela cadeia (1936) e do ingresso no Partido Comunista do Brasil (1945), já era homem de princípios, completamente estranho ao tipo de intelectual que se presta a trabalhar como espadachim a soldo das classes dominantes. Todas as suas obras de ficção, que são dos anos 1930 (anteriores, portanto, ao ingresso no PCB), carregam a marca indelével, em forma e conteúdo, da sua profunda identidade com as massas populares, fonte autêntica do gigantismo de sua obra. Esta sua posição e atuação na luta de classes, como literato e homem de partido, é o objeto principal deste ensaio. Não há aqui, portanto, nenhuma pretensão de fazer uma crítica literária do seu romance, tarefa que exigiria estudos extensos e cuidadosos.


Em carta a uma jovem escritora, já no fim da vida, dizia Graciliano, em tom de conselho e desabafo: “Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso, não há nada”iv. Inseparável, portanto, o processo criativo da participação na vida e na luta do povo. Esta participação não enfraquece - como querem alguns -, senão que fortalece a criação artística, porque é a base mesma sobre a qual repousa um dos seus pilares, a verossimilhança. Como retratar convincentemente o que não se viveu? Impossível, diz-nos o Velho Graça.


*


A literatura “graciliânica” é sóbria, complexa, densa. Em vida, seus livros vendiam menos do que os de outros romancistas nordestinos, como José Lins do Rego e Jorge Amado. Graciliano, na verdade, nunca pôde se dedicar exclusivamente à confecção de seus romances, trabalhando em diversos empregos simultâneos, passando frequentes privações, como veremos adiante. Foi apenas após a morte que sua obra atingiu consagração definitiva, despertando interesse renovado com o passar dos anos, experimentando adaptações para o teatro e o cinema. Esta longevidade explica-se: sua literatura não desenha heróis infalíveis, nem grandes aventuras, mas a epopeia cotidiana de homens e mulheres comuns. A ambição e os tormentos que assolam Paulo Honório; os ciúmes, recalques, revolta e loucura de um Luís da Silva; os sentimentos do bruto vaqueiro Fabiano, que muito pensa e pouco fala; os sonhos da cachorra Baleia, quase tão humana quanto seus donos animalizados pela miséria... Que galeria! Ele captou, como nenhum outro em seu tempo, a essência da vida social, a psicologia e a linguagem das massas. Por outro lado, as bases semicoloniais e semifeudais de nossa sociedade, que denunciou em seus romances, a miséria, a iniquidade, a opressão, seguem atormentando o povo brasileiro, outra razão da atualidade da sua literatura.


Uma das acusações mais comuns que sofre é chamarem-no pessimista. Como conciliar esta opinião com a sua notória condição de comunista? Numa carta a Heloísa, sua mulher, da época em que escrevia Vidas Secas, temos uma indicação desse “pessimismo”:


Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como você vê... O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. A diferença é que eu quero que eles apareçam antes do sono, e padre Zé Leite pretende que eles nos venham em sonhos, mas no fundo todos somos como a minha Baleia e esperamos preás”. (Grifo meu).


Ora, como a cachorra sacrificada pelo vaqueiro, Graciliano também almeja um mundo em que as asperezas e mazelas da vida sejam substituídas por uma ordem nova. Contudo, os padres e demagogos de plantão pretendem que isso se faça num sonho; os revolucionários trabalham para que isso se faça em vida ainda, em plena luz do dia, e é disso que nos fala o grande escritor nesta carta tão significativa. Se muitas vezes sua literatura é amarga, não é por outra razão, senão porque amarga é a realidade da qual ela nos fala. Embelezá-la é que seria faltar ao compromisso com a nossa gente.


***



I. O ciclo ficcional


Quadro Retirantes, do Portinari, de 1944.
Quadro Retirantes, do Portinari, de 1944.

Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. (...) Houve uma série de desastres: mudanças, intrigas, cargos públicos, hospital, coisas piores e três romances fabricados em situações horríveis – Caetés, publicado em 1934, S. Bernardo em 1934, e Angústia em 1936. Evidentemente isso não dá para uma biografia. Que hei de fazer? Eu devia enfeitar-me com algumas mentiras, mas talvez seja melhor deixá-las para romances”.


Os anos de formação


Quando tinha dez anos, Graciliano foi iniciado na literatura pelo tabelião Jerônimo Barreto, um sertanejo que contava histórias de Robespierre e tinha muitos livros em casa. Suas primeiras crônicas apareceram em 1915 (nessa época morava no Rio de Janeiro), nos jornais Parayba do Sul e Jornal de Alagoas. Obrigado a retornar para Palmeira dos Índios (AL), devido a uma tragédia familiar (perdeu três irmãs vitimadas por um surto de peste bubônica), colaborou, no princípio dos anos de 1920, no jornal local Os Índios. Entre o fim da década de 20 e início da década de 30 desempenhou diferentes funções públicas em Alagoas: diretor da Junta Escolar de Palmeira dos Índios em 1926, prefeito da mesma cidade entre 1927-1930, diretor da Imprensa Oficial de Alagoas entre 1930 e 1931 e diretor da Instrução Pública de Alagoas entre 1933 e 1936. Somente o primeiro cargo foi cumprido sem maiores sobressaltos: dos demais, ou renunciou ou foi exonerado, por chocar, com suas medidas e posicionamentos, alguns interesses das oligarquias locais. Graciliano foi, realmente, uma figura sui generis a frente destas instituições.


Dois exemplos: como responsável pela instrução pública, suprimiu o canto do Hino de Alagoas nas escolas, por “emburrar os alunos”; determinou o fornecimento de uniformes e sapatos às crianças; instituiu a merenda escolar (isso só se tornaria lei federal vinte anos depois); efetivou as professoras rurais, equiparando-as às filhas de famílias abastadas que lecionavam na capital. Antes disso, como prefeito, desafiou os interesses dos latifundiários locais ao questionar os seus métodos brutais de roubos de terras. Em relatório ao governo do estado de Alagoas sobre as atividades da prefeitura, entre 1928-1930, dizia: “Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me”.


Não só pelo conteúdo, mas pela forma literária, estes relatórios causaram sensação e foram publicados pela imprensa. Nesta época Graciliano já trabalhava em seu primeiro romance, Caetés, que tem como pano de fundo as querelas e o ambiente opressivo de cidade pequena, como a Palmeira dos Índios de seu tempo. Lançado em 1934, este livro seguro, sério, apenas indicava o autor que, nos anos seguintes, revolucionaria a literatura brasileira, publicando uma sequência quase inacreditável de obras-primas, enquanto a sua própria vida virava pelo avesso.


O ciclo ficcional


Graciliano escreveu São Bernardo na torre de uma igreja vazia, durante a convalescença de complicada cirurgia na barriga, em época de desemprego. É a história de Paulo Honório, um “cabra criado no eito”, alfabetizado na cadeia, obcecado por tornar-se um grande proprietário. Quando consegue apropriar-se das terras de São Bernardo, casa-se com Madalena, uma professora de ideias progressistas, que se recusa a ser apenas mais uma das propriedades do marido. Disso, nascem ciúmes, tormentos e, por fim, a desestabilização completa do aparentemente inabalável protagonista. Como pano de fundo daqueles conflitos, a formação do latifúndio pela subjugação ilimitada da massa camponesa, que vive sob um despótico sistema de opressão semifeudal. Nas suas terras, Paulo Honório é prefeito, juiz, chefe de polícia, padrinho.


A linguagem de São Bernardo é concisa e extraordinariamente viva. Lendo-o, acreditamos mesmo que tenha sido Paulo Honório quem o escreveu. Sobre o processo criativo desta obra, disse Graciliano:


O S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo traduzido para o brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem. (...) O velho Sebastião, Otávio, Chico e José Leite me servem de dicionários”v.


Aqui já aparece uma crítica que Graciliano faria repetidas vezes aos autores da cidade: estes buscavam emprestar aos seus personagens do campo uma linguagem que lhes era estranha, postiça, enfraquecendo a sua ficção. Qual a fonte viva da linguagem popular, afinal? As próprias massas, apontadas nesta carta como “dicionários de brasileiro”. Isso não significa menosprezo à norma culta da língua, que Graciliano dominava solidamente, mas o seu enriquecimento pela experiência direta junto ao povo.


*


No atribulado ano de 1936 apareceria o livro Angústia, publicado durante a prisão do seu autor. Nise da Silveira e Eneida de Morais, companheiras de cárcere, organizaram uma pequena cerimônia de lançamento na enfermaria do presídio, junto a Heloísa Ramos, esposa de Graciliano.


Segundo Nelson Werneck Sodré, trata-se de “um romance difícil e denso, livro importante em nossa história literária, profundo, sério”vi. A história articula-se em torno de três personagens: Luís da Silva, o protagonista-narrador, filho de uma família de senhores de terras decadentes que exerce funções públicas modestas na cidade; Marina, uma mulher jovem, cheia de sonhos, sua vizinha e futura noiva; Julião Tavares, sujeito rico, “reacionário e católico”, que atravessa o romance de Luís da Silva, seduz Marina, engravida-a e depois abandona-a. Na aparência, uma estória simples, com temática tantas vezes abordada; na essência, um livro excepcional, que sobre base tão singela tece duras críticas à ordem vigente, contando várias estórias simultaneamente. Aparecem referências explícitas ao golpe de 1930, à repressão política então desatada, como neste trecho, narrado pelo protagonista:


“Muitos crimes depois da revolução de 30. Valeria a pena escrever isto? Impossível, porque eu trabalhava em jornal do governo. Moisés se tinha ausentado: a polícia incomodava os rapazes que liam livros suspeitos e falavam baixo”.


Em outros trechos, a carestia de vida, a intelectualidade corrompida. A condição feminina também se destaca, como um dos fios condutores do romance. No final, Luís da Silva mata Julião Tavares, enforcado, o que não poderia ser mais significativo. Conta-se que Sobral Pinto, advogado dos presos políticos, teria dito a Graciliano durante uma visita na cadeia: “Com as leis que fizeram por aí, os seus romances dariam para condená-lo”. Angústia é mesmo um livro que, desde o título até a última página, recria o pesado ambiente do período marcado, no plano interno, pela repressão feroz que se seguiu ao Levante Popular de 35 e, no plano externo, pela ascensão do fascismo. Esta preocupação com as grandes questões do seu tempo, fonte também de inspiração, aparece em carta a Heloísa:


“O meu Estado está pegando fogo, o Brasil se esculhamba, o mundo vai para uma guerra dos mil diabos, muito pior que a de 1914 – e eu só penso nos romances que poderão sair dessa fornalha em que vamos entrar”.


Pois esta fornalha, e somente ela, poderia gerar obras deste quilate, feitas de “sangue e carne”.


***



II. Vidas Secas: “o grande romance sertanejo”


Frontispício da 1a edição do Vidas Secas, de 1938.
Frontispício da 1a edição do Vidas Secas, de 1938.

-Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Sabe como elas fazem?

-Não.

-Elas começam com uma primeira lavada. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam, e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer. (Graciliano Ramos, conversa com o jornalista Joel Silveira).


Graciliano Ramos foi libertado da prisão em 13 de janeiro de 1937, após dez meses de encarceramento. Jamais foi interrogado e nenhuma denúncia foi apresentada contra ele. Este foi o caso, aliás, de numerosas pessoas detidas pela todo-poderosa polícia política comandada por Filinto Müller. Conta-se que Vargas, instado a libertar o autor de Angústia, teria dito: “Neste caso de comunismo eu não mandei prender ninguém, mas também não mando soltar ninguém”vii. Anos mais tarde, em Memórias do Cárcere, Graciliano diria sobre ele, sarcasticamente: “Era um prisioneiro como nós; puxavam-lhe os cordões e ele se mexia, títere, paisano movido por generais”.


Não nos deteremos sobre este ponto, agora. O que importa é notarmos as condições de Graciliano nesta época: desempregado, fichado pela polícia, com família numerosa para sustentar. Ainda preso, decidira-se a não regressar para o nordeste e a viver de literatura. Passaria a compor, como um operário, contos e crônicas para diferentes veículos de imprensa, de resto, nem sempre suficientes para cobrir as parcas necessidades. Escritor consagrado, moraria em pensão modesta no Catete, em companhia de jovens estudantes ou intelectuais em princípio de carreira.


Instado a participar de um concurso de contos infantis do Ministério da Educação e Cultura (que ganharia com a obra A terra dos meninos pelados), topou com o então Ministro, Gustavo Capanema – um dos próceres do futuro Estado Novo – no elevador do MEC, no dia da inscrição. Registrou assim este episódio em carta a Heloísa: “Zélins (José Lins do Rego) acha excelente a nossa desorganização, que faz que um sujeito esteja na Colônia hoje (Colônia Correcional de Dois Rios, a terrível prisão de Ilha Grande) e fale com ministros amanhã; eu acho ruim a mencionada desorganização, que pode mandar para a Colônia o sujeito que falou com o ministro”viii.


Neste período de privações, escreveria, em tempo relativamente curto, o monumental Vidas Secas, publicado em 1938. Trabalho inovador pela sua técnica, pois cada capítulo possui independência dentro da obra, constituindo-se como um “romance desmontável”. Contudo, a totalidade do texto não se perde, firmemente tecida pelas mãos habilidosas do seu autor. Inovação devida, talvez, menos a uma preocupação estética que aos apuros financeiros de Graciliano:


“A conta da pensão e as despesas duplicadas com a vinda da família o obrigariam a escrever os capítulos como se fossem contos. Era um artifício para ganhar dinheiro, publicando-os isoladamente em jornais e revistas, à medida que os produzia. Às vezes, republicaria o mesmo conto, com título alterado, em outros periódicos”ix.


Nesta época, a esposa e duas filhas menores dividiam o quarto de pensão com Graciliano. Sobre as condições, precaríssimas, em que foi escrito este clássico da nossa literatura, contaria sua filha Clara:


“Além da mesa, solidária com o dono, bamba, uma perna apoiada num dicionário, há no quarto mais duas cadeiras, um armário; uma cama, grande, de casal; outra estreita, solteira. (...) Entre a porta e a parede, a mulher e as duas meninas, Graciliano escreve sua novela. Trabalha de preferência de madrugada. Levanta-se por volta das três horas e entra escrevendo manhã adentro. Pela janela, única, intromete-se uma paisagem de gatos num telhado de garagem. Para que o velho Graça possa dormir à tarde, Heloísa leva as crianças à praça do Largo do Machado. (...) Mais quatro pessoas enchem então o espaço exíguo: um vaqueiro, sua mulher, dois meninos. Baleia ressuscitou, anda espalhando os gatos num telhado de garagem”x.


Tamanhas eram as suas privações que não tinha sequer dinheiro para pagar a passagem do seu filho Márcio (fruto do primeiro casamento) de Alagoas para o Rio, onde este buscava tratamento psiquiátrico. Diria, em carta cheia de preocupações:


“É possível a sua entrada numa casa de saúde aqui no centro, mediante a contribuição de quatro mil-réis por dia. Mas como você poderá vir? (...) Por enquanto, isto é o mais difícil”xi.


Este é o preço que nosso grande escritor pagava para não se vender ao regime vigente. E, também, por tentar viver da sua arte, em país que, ainda hoje (imaginem naquele tempo), não enxerga a literatura como profissão, mas como passatempo de ricos, ou ofício de cortesãos.


“O maior romance sertanejo”


Sobre a importância de Vidas Secas em nossa literatura, simplesmente reproduzirei a opinião abalizada de Nelson Werneck Sodré, retirada do seu livro Em defesa da cultura. Além de definir o romance, Sodré comparou-o com outras obras, numerosas, que trataram do drama da seca e do sertão:


“Em Vidas Secas – releiam o romance – a paisagem física é caracterizada em algumas pinceladas, que se destinam a situar o drama no espaço. Aparece a seca, naturalmente: ela vai tanger a família de Fabiano e estará presente em toda a duração da retirada, castigando homens, bichos, plantas. Não há lugar para o cangaço nem para o fanatismo religioso. Isto significa, em suma, que o romance é despojado de todos os elementos que fazem parte da fórmula, da receita, do tipo de ficção regional que tem a seca como tema. Ele [Graciliano Ramos] não utiliza o pitoresco, no fim de contas. O romancista sabe que não é o pitoresco que define, em profundidade, o problema. Tudo o que acontece – e acontece muita coisa nesse livro muito pequeno – pode levar Fabiano ao cangaço ou ao fanatismo, mas isso é o secundário, e não aparece, não faz parte do drama. Vidas Secas começa a diferir no título: secas são as vidas, as criaturas que as vivem. A sociedade – não a natureza – é que seca essas vidas. Os males profundos, enraizados, duradouros é que secam essas vidas e transformam os homens em bichos, viventes em coisas – e não os flagelos. No plano da realidade, é sabido que a seca castiga o pobre, mas poupa o rico...


“Vidas Secas é o maior romance, entre os que tiveram o sertão como cenário. Em Fabiano, o romancista tipificou o sertanejo pobre, ignorante, atrasado, vítima não da seca apenas, mas da sociedade feudal nordestina. E, assim, tão profundamente enraizado no espaço, naquele determinado espaço, o sertão nordestino, o romance universalizou, do ponto de vista artístico, o drama humano que descreveu... Como arte literária, como forma, é realização superior. Porque é evidente que não basta o poder de captar a realidade, buscando-a sob os disfarces do pitoresco. É preciso, também, o poder de reproduzi-la, em termos de arte literária. Só quando isso acontece, existe o escritor”.


*


Somente após a publicação de Vidas Secas, Graciliano arranjaria, por interferência de Carlos Drummond de Andrade, trabalho como inspetor do ensino público no Rio (então Distrito Federal) e, posteriormente, na revista Cultura Política, ligada ao MECxii. Encerrava, assim, seu ciclo ficcional – ainda publicaria, de ficção, o livro de contos Insônia – passando a confeccionar (lentamente) duas obras autobiográficas: Infância (1945) e Memórias do Cárcere (publicada postumamente). No meio do caminho, a Segunda Guerra Mundial e o ingresso nas fileiras do Partido Comunista do Brasil.



III. A militância no Partido Comunista do Brasil


Cerimônia de filiação ao PCB, ao lado do Prestes e do Pedro Pomar.
Cerimônia de filiação ao PCB, ao lado do Prestes e do Pedro Pomar.

O ingresso do maior romancista brasileiro, um dos maiores escritores contemporâneos, no PCB é mais uma prova concreta de que não existe divergência entre o conceito individual de liberdade e do trabalho de um romancista com os princípios do Partido Comunista... O romancista que fez a análise em profundidade de tipos e situações sociais da vida brasileira, que escreveu a história do sertanejo na densidade trágica de ‘Vidas Secas’, caminhava para uma confissão plena e indiscutível, a de que só um Partido Comunista pode lutar contra aquela situação social em que se debate a maior parte dos personagens tão vivamente fixados naqueles romances. Por isto o romancista pede inscrição e é aceito nesse Partido”. (Jornal “Tribuna Popular”, órgão do PCB, agosto de 1945).


O culminar de uma longa trajetória


Naquele segundo semestre de 1945, Graciliano saboreou alguns acontecimentos mais felizes que os seus inseparáveis cigarros Selma: no mesmo dia em que ingressou no PCB, com ficha de filiação avalizada pelo próprio Prestes, lançou “Infância”, obra autobiográfica que constitui verdadeira obra-prima no gênero. Antes, no livro “Histórias de Alexandre” (1938) já havia incursionado, em parte, no universo memorialístico, ao compilar estórias que compõem o folclore nordestino, muitas delas ouvidas nos seus idos tempos de Quebrangulo e Palmeira dos Índiosxiii.


Era uma época de avanço das correntes democráticas e revolucionárias em todo o mundo, após a demolidora vitória da União Soviética, dirigida por Stalin, contra o nazi-fascismo. No Brasil, o Partido Comunista, recentemente saído da ilegalidade, gozava de grande prestígio, não só entre as massas de trabalhadores como entre a intelectualidade progressista. O PCB chegou a ter 200 mil filiados, e nos estádios do Pacaembu e São Januário multidões aglomeraram-se para saudar Prestes, saído recentemente da cadeia.


A esposa de Graciliano, Heloísa, e seus filhos Ricardo e Clara filiaram-se ao Partido antes do escritor. Em declaração à Tribuna Popular, o “velho Graça” esclareceu nestes termos a sua demora a decidir-se:


Quando, em 1936, fui viver no Pavilhão dos Primários, na Sala da Capela, na Colônia Correcional de Dois Rios e em outros lugares semelhantes, encontrei os excelentes companheiros que hoje trabalham no Partido Comunista. Sempre me senti perfeitamente ligado a eles, e se até agora me limitei a apoiá-los, sem tomar posição de militante, foi por não saber se poderia ser útil, nesta agitação em que nos achamos, o trabalho de um sujeito que mal sabe contar histórias chochas”.


“Histórias chochas”, imaginem... Na verdade, a paixão pelo socialismo, parafraseando expressão de Jack London, nasceu muito cedo em Graciliano: há relatos de alunos seus, dos tempos de sertão, sobre o entusiasmo com que acolheu a Revolução de Outubro. Nos difíceis anos de 1930 o escritor manteve-se sempre crítico feroz do regime de Vargas, coincidindo, plenamente, com a posição do Partido Comunista. Seus filhos mais velhos, Márcio e Júnio, militaram nas Juventudes Comunistas nesta época. Mesmo sem ser filiado, sofreu na pele as consequências da repressão ao Levante Popular de 1935, mantendo na cadeia uma dignidade que alguns militantes de carteirinha não souberam conservar. Nesta época conturbada, escreveu a Heloísa, em bilhete:


A encrenca política está num beco sem saída: ninguém sabe como esta porcaria vai acabar. É melhor pensar em outra coisa. Enfim, tudo vai muito mal, no pior dos mundos possíveis. É preciso que o Alberto endireite isso”xiv.


“Alberto” é Alberto Passos Guimarães, então secretário-político do Partido Comunista em Alagoas.


Está claro que o ingresso em 1945 teve bases sólidas, muito antigas. Quando o Partido voltar à ilegalidade (fim de 1947) e vários de seus militantes forem perseguidos, outros debandarem, Graciliano poderá demonstrar a firmeza de sua decisão, que sustentará até o fim da vida.


A cisão entre os intelectuais


As ilusões acerca de um novo período de “paz e democracia” durarão pouco. No plano externo, em março de 1946, Churchill profere o famoso discurso de Fulton, que marca a hostilidade aberta dos “aliados” contra o campo socialista. É o início da “guerra fria”. No plano interno, a consigna do PCB, de “Constituinte com Vargas”, é de fato derrotada, pois este é deposto por golpe militar e substituído pelo ultrarreacionário General Dutra. Este, que havia sido um dos elementos germanófilos do Estado Novo, converteu-se, durante a guerra, em agente ativo do imperialismo ianque. A repressão aos comunistas recrudesce: primeiro, ideologicamente, logo, com medidas que culminarão, no fim de 1947, com a cassação dos seus mandatos parlamentares e a decretação da ilegalidade do Partido. A partir daí, o PCB iniciará um processo autocrítico, acerca das ilusões constitucionaisxv.


Tudo isto não poderia deixar de se refletir entre os intelectuais, como separação entre comunistas e progressistas de um lado e meros oportunistas de outro, que abandonaram o “antifascismo” ocasional assim que os ventos mudaram, não raro substituindo-o por feroz anticomunismo. Graciliano Ramos não apenas tomaria posição inequívoca na luta, como seria levado para o centro da polêmica, através da sua atuação na Associação Brasileira de Escritores (ABDE). O que lhe custaria, inclusive, rupturas com amigos de vida inteira, como José Lins do Rego.


Este último, ainda em 1945, escreveu um artigo defendendo a fundação de um partido “democrático”, que pudesse se contrapor ao Partido Comunista, que avançava “como um rolo compressor”. Graciliano respondeu-lhe publicamente, dizendo, dentre outras coisas:


Não nos interessam os bons propósitos e a consciência limpa de certos privilegiados que rodam nos automóveis, infinitamente longe de nós. Basta que um desses cavalheiros, em momento de enjoo, se refira à canalha dos morros, à malta dos desocupados para se desvanecerem todos os bons propósitos. Vivem na superfície, reciprocam amabilidades, incham em demasia — e supõem que atrás deles há multidões emboscadas esperando milagres impossíveis... Observador por índole e por ofício, sabe [José Lins] perfeitamente isto, o único amigo do povo é o povo organizado; temos ideias bem claras, e as ideias generosas dos amigos da onça nos deixam de orelha em pé”xvi.


A ABDE foi fundada em São Paulo, em 1945, no contexto do entusiasmo geral antifascista. Na sua Declaração de Princípios, dizia defender a “completa liberdade de expressão do pensamento”, a “paz e a cooperação internacionais” e a “independência econômica dos povos”. Além dessas bandeiras, a ABDE também empalmou a sentida luta em defesa dos direitos autorais e da profissionalização do ofício de escritor (sabe-se que, na Constituinte de 46, Jorge Amado desempenhará papel de destaque nesta questão).


Logo, com a perseguição aos comunistas, irá se abrir a luta na Associação. No segundo congresso da ABDE, realizado em Belo Horizonte, em 1947, a delegação comunista apresentou moção contra o fechamento do PCB, que foi aprovada pelo plenário. Alegando um problema regimental (a moção deveria ter passado, antes, pela comissão de assuntos políticos), alguns diretores renunciaram, entre eles, Carlos Drummond de Andrade, Afonso Arinos e Antônio Cândido. “Ardorosos” antifascistas de véspera, negavam, agora, solidariedade aos comunistas perseguidos (nesta época, Jorge Amado foi obrigado a exilar-se, e Cândido Portinari levado a depor sobre seus quadros na Polícia Política).


No III Congresso da ABDE, em Salvador, quando a cisão já se consolidara, Graciliano desmascarará aqueles que, combatendo os comunistas, se apresentavam como defensores das “liberdades individuais”:


Os nossos inimigos, que acatamos e adulamos pacientemente, disseram de nós cobras e lagartos, referiram-se a vagos intuitos vermelhos. Éramos bichos perigosos à ordem. Sim senhor. Cadeia. Quando se sentem mal, pedem cadeia para os viventes que os incomodam”xvii.


Em 1949 ocorrerá a eleição para a diretoria da entidade. Apoiando-se em votos por procuração, muitos deles fantasmas, a chapa anticomunista vencerá a eleição. Os escritores do Partido e outros intelectuais progressistas comparecerão à posse da nova diretoria para denunciar a fraude. Integrando a delegação, um combativo Graciliano. Em posições inconciliáveis, os escritores chegaram às vias de fatoxviii. No final, desmascarada, a diretoria eleita de modo irregular renuncia, a chapa apoiada pelos comunistas assume.


É completamente inútil, como faz Dênis de Moraes, biógrafo de Graciliano, dizer que este cumpriu a tarefa “constrangido”. Não só suas declarações (como a que reproduzi acima), desmentem-no, como sua própria atuação: Graciliano seria eleito presidente da ABDE em 1951 e reeleito em 1952, numa época em que o PCB brigava para aplicar uma linha de esquerda. Diria, num Congresso:


Não estamos a serviço de nenhuma potência estrangeira. Nunca diríamos ao gringo: ‘Entre, tome conta disto. A casa é sua’. Não, meus amigos. A casa, pobre, é nossa. E denunciamos os traidores que desejam vendê-la”.


Trata-se duma questão de coerência: no fundo, aquela polêmica dava-se entre os que defendiam uma arte “neutra”, “apolítica” – de fato uma arte reacionária; e os que confeccionavam, com seus romances, instrumentos de luta para o povo. Desde “Caetés” Graciliano já tomara posição, e a militância no Partido Comunista apenas amadureceu as antigas conclusões. Diria, sobre esta luta de princípios:


A verdade é que nem todos os livros cantam loas aos tiranos. A desgraça dessa gente é perceber que suas armaduras racham, a sua força se esvai, os seus defensores se transformam de repente em inimigos. A palavra escrita é arma de dois gumes. A literatura velha arqueja e sucumbe; a literatura nova fere com vigor a reação desesperada”xix.


Em vão, portanto, qualquer intento de desmerecer esse posicionamento, em que coincidiram plenamente o escritor e o homem.



IV. Desaparecimento, reaparecimento, redenção


Os curtos anos compreendidos entre 1945, data de ingresso no PCB, e 1953, quando falece, foram provavelmente os mais intensos da atribulada existência de Graciliano Ramos. Além da atividade político-partidária, a qual se dedicou com paixão – o que se atesta pelos inúmeros discursos, cartas, manifestos, crônicas e campanhas que subscreveu -, o mestre Graça continuava dando duro para sustentar a família numerosa. Acumulava dois empregos: um, como inspetor de ensino, outro, como revisor do jornal “Correio da Manhã”xx.


Neste ambiente de trabalho ininterrupto e grande agitação política, nosso grande escritor tecia, com zelo de artesão, os quatro volumes do seu livro “Cadeia” – como se chamava, inicialmente, “Memórias do Cárcere”.


As “Memórias”


Não era apenas a dura rotina de trabalho e militância que dificultava a redação de “Memórias do Cárcere”. Graciliano passara privações terríveis nas cadeias do Nordeste, do Rio, de Ilha Grande, nos porões de navios-prisão. Vira iniquidades sem par, como a situação de companheiros torturados e a deportação de Olga Benário e Elisa Berger para a Alemanha nazista. Conhecera a degradação nas entranhas do fascismo tupiniquim. Contudo, dado seu comedimento, mesmo pessoas próximas desconheciam o alcance dramático das suas experiências. Ora, escrever sobre elas era, também, revivê-las.


Outra dificuldade vivida pelo autor, confessada logo no início do livro, era falar sobre pessoas reais, viventes de carne e osso. Por vocação, o grande ficcionista recusava os estereótipos e as idealizações fáceis. Descreveria, por isso, lado a lado, os gestos nobres e solidários e a torpeza, a coragem e o medo, os lutadores de todas as horas e os que, acostumados a nadar a crista da onda, não puderam suportar o contra-ataque furioso da reação. Diria:


Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma, sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos: devo ter-me revelado com frequência egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam infligir naquele ano terrível”xxi.


Na jornada, conviveria com presos comuns, em ambiente de grandes privações. Observador “por índole e por ofício”, estabeleceria contato com aqueles seres do subsolo social, sentiria suas dores, interessar-se-ia pelas suas vidas. Legaria para a história um libelo implacável contra os algozes e as infâmias que presenciou, como neste trecho em que descreve a prisão de Ilha Grande:


“A precisão de um mictório chegou-me forte, levantou-me, dirigiu-me àquele ponto. Já havia me achado ali, pela manhã... mas então o refúgio estava deserto. Agora havia ajuntamento, e o que percebi horrorizou-me. (...) Pendiam do teto alguns chuveiros, quatro ou seis, e junto a uma parede se alinhava igual número de latrinas, sem vasos, buracos apenas, lavados por frequentes descargas rumorosas. Em todas viam-se homens de cócoras, e diante deles estiravam-se filas, esperando a vez, cabisbaixas na humilhação, torcendo-se (...). Caras macilentas, o suor a escorrer nas barbas crescidas; magrém e sujeira, chagas negras medonhas produzidas pela mucurana; fadiga, nudez mal disfarçada em trapos imundos... havia filetes de sangue às margens das latrinas, coágulos de sangue. (...) Afinal, pude esvaziar a bexiga, livrar-me da exposição miserável, tornar ao galpão. Tinha sono, mas não consegui dormir. O frio espicaçava-me, os queixos batiam castanholas”xxii.


Vargas, que à essa altura aproximava-se do Eixo, seria apresentado em diferentes momentos como um “títere”, “paisano movido por generais”. No trecho em que relata a deportação de Olga e Elisa, Graciliano anota:


“A subserviência das autoridades reles a um despotismo longínquo enchia-me de tristeza e vergonha. Almas de escravos, infames; adulação torpe à ditadura ignóbil”xxiii.


Aqui, o caráter geralmente sóbrio cede lugar, como se vê, à indignação contra a opressão. Porque o fogo terrível da luta de classes envolvia, e movia também, o preso político Graciliano Ramos.


“Viagem”


Graciliano sendo recepcionado na União Soviética, em 1952.
Graciliano sendo recepcionado na União Soviética, em 1952.

Em 1952, Graciliano, então presidente da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), interromperia a redação de “Cadeia” para realizar um sonho antigo: conhecer a União Soviética. As suas notas, escritas às pressas entre uma parada e outra, virariam o livro “Viagem”.


São inúmeros os livros de intelectuais ocidentais sobre a vida nos países do campo socialista, neste período. Tratava-se de verdadeiro, e necessário, “esforço de guerra”, para contrapor-se à feroz campanha anticomunista desatada pela imprensa capitalista. Jorge Amado lançara, em 1951, o livro “O mundo da paz”, que foi apreendido das livrarias pela polícia. Graciliano não fugiria do seu posto, mas mesmo aí percebe-se uma nítida diferença em relação a outros autores: o observador arguto, cáustico algumas vezes, engraçado outras, nunca superficial, deixaria suas digitais bem marcadas nesta obra. Não são meras impressões ou cifras compiladas: “Viagem” também é obra de grande valor literário. Numa interessantíssima passagem, diria, sobre a aparente uniformidade que presenciou:

“Um ofício não é superior a outro – e os homens tendem a uniformizar-se. Essa ideia choca o nosso individualismo pequeno-burguês: achamos vantagem nas discrepâncias, receamos tornar-nos rebanho. E nem vemos que somos um rebanho heterogêneo, medíocre, dócil ao proprietário”.


Trata-se, aqui, de um problema de fundo. Na sociedade baseada na exploração, os adornos e vestimentas funcionam como traços distintivos entre as pessoas, o que não acontece no socialismo: aí, o que importa em primeiro plano é o ser humano e a ideologia que o guia – a alma mesmo das gentes, como dizia o Presidente Mao.


Graciliano e o realismo socialista


Dênis de Moraes, biógrafo de Graciliano, sustenta que este jamais aceitou o realismo socialista. Contudo, não encontrei em nenhum de seus escritos afirmação neste sentido, e mesmo Dênis faze-o recorrendo a terceiros.


O que parece claro é que Graciliano recusava a cópia mecânica de romances tecidos em condições históricas diversas das nossas. Num juízo que fez, certa vez, sobre Machado de Assis, lançou uma pista sobre a sua própria concepção do papel da literatura e do escritor:


“O que mais me distancia de Machado de Assis é o seu medo de definir-se, a ausência completa de coragem de uma atitude. O escritor tem o dever de refletir a sua época e iluminá-la ao mesmo tempoxxiv. (Grifo meu).


Graciliano recusar-se-ia a emprestar à realidade cores que ela não tem, e seria, por isso mesmo, acusado algumas vezes de “pessimista”. O que é completamente injusto, como tenho tentado demonstrar neste breve ensaio. Ocorre que ele jamais seria escritor de panegíricos. Quem lê-lo, deverá se dar ao trabalho de encontrar, entre os econômicos adjetivos, a solidez de suas convicções, como ocorre com a vegetação sertaneja, que esconde sob aparência inóspita raízes profundas.


Episódio pouco conhecido foi a elaboração, por Graciliano, de um plano de trabalho interno ao Partido Comunista para formar novos escritores saídos das massas. Em sua opinião, ao orientar os jovens literatos, seria preciso prevenir cinco erros que eles porventura cometessem:


a) Os erros de caráter doutrinário;

b) Os desvios da linha política do Partido;

c) As tiradas demagógicas, o excesso de pieguices sentimentais, os devaneios ocos, a grosseria de linguagem, o populismo intencional etc;

d) As imperfeições de forma e de fundo;

e) A falsidade na construção dos tipos e situações”xxv.


Todo o plano de trabalho, incluindo os critérios de avaliação, constitui uma forma autenticamente proletária de lidar com a literatura e a arte, despindo-a de qualquer misticismo, possibilitando a sua reprodução em massa. E se a preocupação estética faz-se presente, também está assinalada a primazia dos critérios ideológicos e políticos.


Redenção


Graciliano desaparecerá em 20 de março de 1953, aos 61 anos, vitimado pelo câncer. Embora os operários de vanguarda e a intelectualidade soubessem o tamanho da sua obra, morrerá sem conhecer a consagração pelo grande público. Para se ter uma ideia, “Vidas Secas”, uma obra que perfila entre as grandes da literatura mundial, demoraria dez anos para esgotar a primeira edição de mil exemplares. Importante destacar que o mesmo se passou com Machado de Assis, reconhecido pelos confrades, mas não pelas massas, à época em que viveu. Por quê? Lênin, falando sobre Tolstoi, que retratou como ninguém a velha Rússia camponesa sem ter sido lido pelos camponeses, pontuou:

Tolstoi artista é conhecido duma ínfima minoria, mesmo na Rússia. Para que suas obras grandiosas se tornem efetivamente patrimônio de todos, é necessária a luta, uma luta contra o regime social que condenou milhões e dezenas de milhões de pessoas à ignorância, ao embrutecimento, a um trabalho de forçados e à miséria, é necessária a revolução socialista”xxvi.


Graciliano encontrou, pois, no velho Brasil semifeudal e semicolonial, ao mesmo tempo, a matéria-prima e os entraves para sua literatura. Esta, no entanto, aumentou com o tempo, e com o tempo atingiu verdadeira redenção. Ele reaparecerá meses depois da sua morte, com “Memórias do Cárcere”, que será o seu primeiro sucesso imediato de vendas: 10 mil exemplares esgotados em 45 dias. Alzira Vargas dirá, anos depois, que no Palácio do Catete o livro foi recebido “com emoção e respeito por todos os seus algozes, conscientes ou inconscientes”xxvii.


O sertanejo de vida dura e enorme sensibilidade jamais reclamou das dificuldades que enfrentou. Disse, uma vez, para um grupo de estudantes:


“Para falar com franqueza, estou longe de agourar aos meus amigos a paz, o cargo bem remunerado, o sono tranquilo, isento de sonhos. Nada ganharíamos com isso. Não espero que sejam felizes: espero que sejam úteis”xxviii.


Graciliano Ramos, escritor, comunista, contador igualmente genial das profundezas do sertão e do mundo novo socialista: foste útil, és muito útil, e creio que, se pudesses, ficarias feliz em sabê-lo.


Notas


i Expressão de Lênin, que via o “realismo sóbrio, o arrancar de toda a espécie de máscaras” como uma das maiores qualidades do escritor russo L. Tolstoi. Ver “Lev Tolstoi como Espelho da Revolução Russa”. Penso que este não é o único ponto de contato entre ambos.


ii Graciliano aponta duas causas para esta inflexão na literatura brasileira, a partir de 1930: o Modernismo e a Revolução de Outubro, os quais, segundo ele, “abriram caminhos, cortaram diversas amarras, exibiram coisas que não enxergávamos”. Ver “Decadência do romance brasileiro”, na coletânea “Garranchos”, organizada por Thiago Mio Salla.  


iii Sobre isto, seu filho Ricardo pontuou: “O que não podemos ignorar é que a febre da pesquisa, ao longo de anos e anos, minuciosa a desenterrar crônicas, poesias, toda a obra juvenil ou imatura de Graciliano, alcançando mesmo pseudônimos para nós secretos, haja unanimemente desprezado as suas ostensivas publicações políticas. Os comentários aqui são dispensáveis”. Ver: Graciliano Ramos, “Garranchos”.


iv Carta a Marili Ramos, na compilação “Cartas”.


v Ver a compilação “Cartas”.


vi Ver, deste autor, “Em defesa da cultura”, ótima referência para o estudo da literatura brasileira da época.


vii Ver: Clara Ramos, “Cadeia”.


viii Ver a compilação “Cartas”.


ix Ver: Dênis de Moraes, “O velho Graça”.


x Clara Ramos, idem.


xi Idem. Márcio suicidar-se-ia em 1950.


xii Talvez ignorando o regime quase de fome em que vivia Graciliano, alguns pretendem apresentar este seu trabalho como “colaboração” com o Estado Novo. Ora, não só Graciliano não exerceu nenhum papel executivo na revista – era revisor – como suas crônicas, sobre os costumes do Nordeste, não contém uma única vírgula de simpatia ao regime vigente. Para leitura destes textos, ver a coletânea “Viventes das Alagoas”.


xiii Em 1962, este trabalho seria reunido a outros dois: A terra dos meninos pelados e Pequena história da República, dando origem ao livro Alexandre e outros heróis.



xiv Ver a compilação “Cartas”.



xv Ver “Problemas da história do Partido Comunista do Brasil”, ed. Seara Vermelha.


xvi “Os amigos do povo”, dezembro de 1945. Publicado na coletânea “Linhas tortas”.


xvii “Lembranças do III Congresso”. Ver a coletânea “Garranchos”.


xviii Este episódio tornou-se célebre porque Carlos Drummond de Andrade alegou ter sido agredido pelos comunistas, ao tentar defender a ata da cerimônia.


xix “Cultura a serviço do povo”. Idem.

 

xx Ver: Dênis de Moraes, “O velho Graça, uma biografia de Graciliano Ramos”. Segundo o mesmo autor, Graciliano, apesar dos apuros financeiros, recusava-se a escrever artigos para o jornal, por discordar de sua linha editorial burguesa.


xxi Ver: Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere”.


xxii Idem.


xxiii Idem.


xxiv Dênis de Moraes, idem.


xxv Parte do discurso proferido na célula Teodoro Dreiser do PCB, em 1946. Ver a compilação “Garranchos”.


xxvi Ver Lênin, “L. N. Tolstoi”, novembro de 1910.


xxvii Dênis de Moraes, idem.


xxviii Ver: “Aos estudantes”, na coletânea “Garranchos”.

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