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Os mortos se manifestam

Foto: Reprodução/@vladimirsafatle
Foto: Reprodução/@vladimirsafatle

Causa espécie que num momento de aguda confrontação política, uma organização como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) tenha virado as suas armas contra um intelectual comprometido de longa data com a emancipação popular, como o Vladimir Safatle. Será por acaso que faltam alvos à direita para atacar?


Na verdade, a fala do tipo “lacração” se dá em cima de uma longa e (concorde-se ou não) fundamentada crítica de Safatle à conversão do que ele chama de esquerda ao discurso e às práticas – à gramática mesma – liberal. Inclusive, na forma como patologiza, desqualifica e despolitiza o fenômeno da ascensão do fascismo. À manchete de Safatle (“Esquerda morreu e extrema-direita é a única força real do país”), o MTST replicou nas suas mídias oficiais: “Só se for para quem tá longe do povo e das periferias”; “Só se for para quem não tá lutando nas ruas”; “E você, tá fazendo o quê?”; “Bora colocar essa revolução pra jogo”.


Comecemos pelo básico: não se julga um conjunto de ideias por uma manchete, pinçada pelo editor para torna-la mais “quente”. Julgar a parte pelo todo é pura desonestidade intelectual, ainda mais se esta atitude vem de quem conhece e pratica muito bem esta economia das atenções. Em segundo lugar, o que significa dizer para um intelectual engajado que ele deveria estar “lutando nas ruas”? O debate de ideias não tem qualquer relevância, as universidades não nos servem para nada? Poderíamos então fechá-las? Neste caso, estaríamos diante da mesma lógica da extrema-direita.


É claro que o mais importante aqui é o debate político, mas não é inútil destacar que o Vladimir Safatle é um dos poucos intelectuais públicos brasileiros, na melhor acepção do termo. Os movimentos populares sempre encontraram nele um interlocutor acessível, aberto à escuta, solidário. Longe de ficar encastelado na burocracia acadêmica, ele tem se mantido ativo no debate na imprensa escrita e falada, comprado brigas desiguais (como a defesa das Jornadas de Junho de 2013) e por isso foi um alvo constante de Olavo de Carvalho e da extrema-direita durante todo o desgoverno de Bolsonaro. As afirmações, por isso, além de politicamente estúpidas, são profundamente injustas.


Quanto ao mérito, como se vê, o MTST se julga mais ou menos assim: “Nós, o Povo”. Na verdade, o Movimento pode responder pelos seus membros, no máximo. Nem mesmo em São Paulo há um único movimento de luta por moradia, mas vários. Portanto, como poderia um movimento específico, identificado com uma pauta específica, declarar-se: “Nós, o Povo”? Em qual cartório lhe foi concedida esta procuração? Na verdade, esta periferia hipotética e romantizada só existe –reparem que contradição – nas fantasias de uma pequena-burguesia idealista. A tal “periferia” hipotética se uberizou, foi em parte conquistada para o mito do empreendedorismo e encontrou na extrema-direita e nas igrejas evangélicas um espaço não só de apoio econômico, mas de reconhecimento espiritual, no rico sentido materialista do termo. Ser sindicalista, ou militante de um partido de esquerda, para esta periferia, é ser pelego ou corrupto. Quem diz isso? Não eu, mas o Galo. Ele não é periferia? Periferia seria o que então – um novo sinônimo de “eu”, enquanto o contrário da periferia seria “o outro”? Nesse estranho critério, “universidade pública” seria não-periferia, mas Câmaras de Vereadores, de Deputados ou Ministérios seriam espaços legítimos, assim como “abençoados” os que para eles se elegeram ou cavaram indicações?


Se for este o critério, estamos ferrados. Porque em termos de votos, ou de “likes”, as periferias entregam-lhes em quantidade muito maior para os direitistas. Ninguém em sã consciência, por exemplo, defenderia que se fizesse hoje um plebiscito popular para decidir pela aplicabilidade ou não da pena de morte, pelo simples fato de que ela provavelmente passaria. Já muitos disseram –inclusive o grande jurista Raul Zaffaroni, que estudou à beça o populismo penal em um tempo em que muitos “socialistas” declaravam a eternidade da democracia liberal –que há que distinguir entre o popular e o popularesco. “Nós, a Periferia”, no mais das vezes não passa disso: uma simplificação grosseira e um populismo barato. Porque quem é da periferia sabe muito bem que ela é, acima de tudo, complexa.


“Não, não, a postagem fala pela esquerda”. Nesse caso, as coisas pioram ainda mais. Qual esquerda? A que governa com os setores “esclarecidos” dos bancos e se recusa a fazer qualquer alteração na estrutura agrária do país? A que prometeu revogar a reforma trabalhista e nos entregou o arcabouço fiscal? A que não faz nada, nada, para reverter a sangria de nossa juventude nas favelas (e, como mostra a Bahia, se há uma instituição absolutamente suprapartidária no Brasil ela é o hiperencarceramento e o extermínio da população periférica pelas polícias)? No plano internacional, a que defende a “globalização” que escraviza mulheres na Ásia e o “multilateralismo”, sabe-se lá o que isto signifique, numa sociedade dividida em classes? Poderíamos continuar infinitamente este inventário de cicatrizes, mas não é este o ponto. A questão é: a esquerda integrada é a esquerda chapa-branca, a esquerda capitalista. Ela morreu, sim, pelo simples fato de que defender o capitalismo e as “regras do jogo” da economia de mercado – que vem embrulhada num pacote ideológico de respeitabilidade burguesa, principalmente durante as eleições – é deixar de ser de esquerda e se tornar de direita. Ou, ao menos, tornar-se um “girondino do socialismo”, como se referia Lênin aos mencheviques.


Por que será que há pessoas no MTST que vestem tão convictamente tal carapuça? Querendo falar pela “esquerda”, revelam-se porta-vozes dos que morreram. Creio que o próprio Safatle pouparia a si e aos outros de qualquer mal-entendido se especificasse: a esquerda liberal morreu. Aí, seria um pouco mais constrangedor sair em sua defesa.


Quanto à outra esquerda, a revolucionária, comunista, ela existe, ainda que minoritária, apesar de décadas de hegemonia burguesa inclusive no interior do dito pensamento crítico. A sua persistência indica que ela não é uma força residual, mas emergente. Estando subterrânea, é preciso estar disposto a procurar nos lugares certos para vê-la. Nenhuma cosmovisão política produziu formas de criatividade de massas tão profundas como ela, dos Sovietes à Revolução Cultural na China. A mesma crise mundial que alimenta a reação à direita produzirá o seu antagonista vermelho à esquerda. É questão de tempo e de esforços.


Igor Mendes é editor da Revolução Cultural, ativista e escritor. Autor, dentre outros livros, de “A pequena prisão”, relato sobre sua passagem no sistema penitenciário, e “Junho Febril”, romance sobre as Jornadas de Junho. Integra a Academia Brasileira de Letras do Cárcere.

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