top of page

Um fascista a menos, nenhum passo a mais


Dizer que a vida do provocador de ultradireita Charlie Kirk valia menos do que uma pena já seria um exagero. Exatamente por isso, uma ação isolada de qualquer estratégia política emancipatória, que facilita a mobilização das hostes de Trump contra a luta social – em nome de eliminar o seu jovem aprendiz –, alveja ao mesmo tempo o facínora e a causa que supostamente motivou o ato, e levanta suspeitas de instrumentalização pelos serviços secretos.



Na tarde desta quarta-feira (10), Charlie Kirk foi alvejado e morto em um comício público dentro de uma universidade do estado ianque de Utah. Kirk era líder de um grupo de extrema-direita chamado Turning Point que promovia pautas de cunho reacionário dentro das universidades norte-americanas. Ele era um ferrenho apoiador de Donald Trump e rosto importante dentro da base social do movimento MAGA. Em plena luz do dia, em uma dessas cenas da vida que superam qualquer ficção, seu pescoço virou um hidrante de sangue após ser atingido no palco por uma bala supersônica. Nesta sexta, o suspeito, Tyler Robinson, um jovem universitário norte-americano, de 22 anos, foi preso pelo crime. Ele teria sido delatado pelo próprio pai, um veterano da polícia de Washington.


Bolsonaro em palestra da Turning Point com Charlie Kirk em 2023
Bolsonaro em palestra da Turning Point com Charlie Kirk em 2023

Aqui, é preciso dizer, em primeiro lugar, que Charlie Kirk foi mais um cadáver produzido pela concepção de mundo e pela sociedade que ele defendia. Ativo defensor da “guerra cultural” contra qualquer manifestação de vida social que não fosse cristã, branca e masculina, ele chegou a declarar que o “custo de mortes é válido pelo direito de ter armas”. Esse direito, naturalmente, deveria ser restrito aos homens da sua classe, ficando o custo a cargo dos negros, latinos e outras minorias, contra os quais toda forma de repressão e desassistência social seriam poucas, incluídas a deportação em massa e a aplicação da pena de morte. Durante a pandemia, este “livre pensador” foi contra a quarentena e defendeu e eficácia da hidroxicloroquina. Também advogava a subjugação das mulheres aos homens e se opunha ao aborto mesmo em casos de estupro. Como um ideólogo, estava à direita de Trump, que decerto é tão reacionário quanto ele, mas precisa matizar seu discurso, sobretudo racial, em certos pontos, por cálculo eleitoral.   


A extrema-direita brasileira copiou de Kirk o método de combater a liberdade de crítica nas universidades. A ideia de que o agora falecido Charlie era um homem do “diálogo”, sustentada por certos oportunistas de féretro, não resiste a um questionamento básico: diálogo entre quem e para fazer o quê? Como bem pontuou David Nemer, professor no Departamento de Estudos de Mídia da Universidade da Virgínia, “a presença de Charlie Kirk nas universidades nunca foi um exercício legítimo de pluralidade, mas sim uma estratégia deliberada de provocação e radicalização. Ele atuava como um agitador extremista, buscando confrontar professores e estudantes progressistas para criar narrativas de perseguição e censura.”1  Afinal, uma visão de mundo assentada no racismo e na defesa da superioridade religiosa é por definição oposta a qualquer convivência pacífica entre os seres humanos. 


Quem queira saber que tipo de ação política prática deriva do discurso de Kirk que olhe para o genocídio em Gaza ou para as prisões de Bukele: eles são a realização da sua causa santa, uma distópica violência reacionária intransigente. Não por acaso, em um desses pseudo-debates abertos, Kirk chegou a emular o trecho “Alemanha acima de tudo”, que pertence ao velho hino nacional daquele país usado pelos nazistas 2. Neste sentido, a sua morte é apenas uma segunda violência, um resultado da estrutura social e do discurso ideológico que figuras como Trump e Kirk encarnam e que assassina diariamente, de bala, de fome ou doenças a muitas milhares de pessoas não apenas na periferia do sistema imperialista, mas nos bolsões de miséria marginalizados nas suas próprias cidadelas.


Em segundo lugar, a execução de Kirk não se configura em um caso isolado, pelo contrário, é mais um episódio em um longo rastro de assassinatos políticos na história recente dos Estados Unidos. A agência de notícias Reuters listou 300 casos de violência política desde a invasão do Capitólio, incluído o atentado a Trump durante um comício em 2024. A imensa maioria desses atos vitimou, no entanto, os opositores de Trump e do MAGA, desde os protestos nas ruas de Los Angeles contra os quais se lançaram soldados das Forças Armadas até a execução da deputada democrata Melissa Hortmann e do seu marido em junho deste ano e a tentativa de assassinato do senador democrata John Hoffman na mesma ocasião. Por isso, é pura hipocrisia e oportunismo eleitoral a afirmação de Trump de que a culpa da violência política pertence à “esquerda radical”, mesmo tom adotado por Elon Musk, que se manifestou no Twitter: "A esquerda é o partido do assassinato".


A quem serve?


Antes de qualquer investigação, como visto, os neofascistas no poder dos Estados Unidos já voltaram suas cargas contra tudo o que se movimente em oposição ao governo, desde liberais moderados do Partido Democrata, passando por movimentos pelos direitos civis até grupos realmente revolucionários. A prisão de Tyler Robinson, que segundo a polícia agiu como um lobo solitário, por si só nega esta tese. Na verdade, embora a polícia afirme ter encontrado algumas poucas frases de cunho antifascista no estojo de armas usado no ataque, o histórico de Tyler não indica nenhum engajamento em qualquer movimento popular organizado. Filho de um policial, aficionado por armas, Tyler não votou nas últimas eleições, embora haja registros seus com camisetas de Donald Trump. Ele é mesmo um típico cidadão norte-americano, em todos os sentidos.


Suspeito Tyler Robinson com camisa da campanha de Trump e slogan MAGA
Suspeito Tyler Robinson com camisa da campanha de Trump e slogan MAGA

Diante de um acontecimento desta complexidade, a pergunta elementar a se fazer é: a quem serve? Como marxistas, devemos aplicar este critério na resolução dos problemas. No caso da luta social, devemos indagar: serve a encorajar e estimular o movimento de massas, sua organização, sua mobilização  ou, ao contrário, estimula a sua defensiva e a passagem à ofensiva no campo oposto? No momento em que crescem diversas manifestações contra Trump em sindicatos, universidades e organizações de defesa dos imigrantes, bem como se fazem sentir os primeiros efeitos do tarifaço sobre a inflação e a empregabilidade nos Estados Unidos; quando há enorme pressão na base de Trump, inclusive do falecido Kirk, sobre os arquivos Epstein, o assassinato desta desprezível figura parece se encaixar na segunda alternativa. Não será difícil à reação produzir um novo Kirk; ela encontra meios de fechar ainda mais o cerco político e repressivo contra os dissidentes. Alguns lugares comuns têm repetido por aí que os EUA caminham para uma guerra civil. Pode ser, embora de algum modo a guerra civil seja uma espécie de estado permanente daquela sociedade. O que realmente parece se desenhar no horizonte de curto prazo é um projeto de poder de Trump e dos seus asseclas que ultrapassa os limites constitucionais do seu mandato.


Lênin dizia sempre que devemos analisar as questões concretamente, isto é, no interior das suas relações, pesadas no conjunto da correlação de forças e das tarefas revolucionárias 3. Por isso, seria pobre resumir nossa análise à defesa acéfala da execução de qualquer adversário em qualquer contexto, do mesmo modo como seria equivocado renunciar por princípio ao uso do terror revolucionário dentro de certas condições. Condenando a tática de execução dos czares e ministros russos pelo grupo “A vontade do povo”, os bolcheviques defenderam e exerceram o terror revolucionário de massas durante a primeira revolução de 1905 e após a tomada do poder. Os comunistas em outras partes agiram sempre assim, do mesmo modo como a reação buscou imputar-lhes mais de uma vez ações que não tinham praticado, como o incêndio do Parlamento Alemão em 1933 ou a explosão da catedral de Sofia, na Bulgária, em 1925. A questão, do nosso ponto de vista, nunca será se o reacionário mereceu ou não o castigo, porque isso é deslocar-se da política ao campo da moral, mas sim se aquela ação serve ou não à elevação da consciência de luta e da organização do movimento de massas revolucionário. Se sim, se justifica, como ocorre agora mesmo nas áreas de ocupação ilegal sionista; se não, deve ser rechaçada, por mais heroicos que seus agentes nos pareçam. Será este movimento de massas a única força capaz de derrotar Trump, e nenhum gesto isolado poderá substituir a necessidade de organizá-lo e estimulá-lo com um trabalho paciente e disciplinado, todos os dias e todas as horas. 



  1. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/09/em-debate-charlie-kirk-brincou-com-hino-usado-por-nazistas-da-alemanha-veja-video.shtml 


  2. Em carta a Inês Armand, de 30 de novembro de 1916, ele recomendava: “Todo o espírito do marxismo, todo seu sistema exige que cada tese seja examinada só: (α) historicamente; (β) só em relação com outras; (γ) só em relação à experiência concreta da história”.  

     

     

     

Assine nossa newsletter

Receba em primeira mão as notícias em seu e-mail

Seu e-mail
Assinar
bottom of page