top of page

A tragédia da FEPASA

Atualizado: 30 de nov.

A série “As tragédias” busca recuperar de forma concisa a memória das empresas públicas que marcaram a história econômica e social de São Paulo e que, ao serem entregues ao capital privado, deixaram um rastro de impactos duradouros sobre trabalhadores, serviços essenciais e o desenvolvimento do estado. A cada semana, apresentamos um novo capítulo dessa história, destacando o papel original dessas instituições, o processo político que levou à sua venda e as consequências concretas que recaíram sobre os trabalhadores paulistas. Mais do que revisitar o passado, a série pretende oferecer elementos para compreender como as privatizações moldaram e seguem influenciando a vida cotidiana, contribuindo para o debate sobre patrimônio coletivo, soberania e o futuro dos serviços públicos em São Paulo.


Foto: @mundozinho/ig
Foto: @mundozinho/ig

A história da Ferrovia Paulista S/A (FEPASA) não é apenas o relato de uma empresa estatal extinta, mas o símbolo do abandono da malha ferroviária paulista, da destruição da mobilidade coletiva de longa distância e da entrega do patrimônio que deveria ser popular ao capital privado. Este é um encadeamento histórico que revela uma escolha de classe: a prioridade ao transporte rodoviário e ao lucro, em detrimento da integração regional, da segurança do trabalho e da soberania logística do Brasil.


A FEPASA foi criada em 28 de outubro de 1971, por decreto, a partir da incorporação de antigas ferrovias do Estado, as companhias Mogiana, Sorocabana, Araraquara e São Paulo & Minas, com o objetivo de unificar e coordenar os serviços ferroviários paulistas.


Na sua constituição, a malha da FEPASA somava cerca de 5 mil quilômetros. A empresa contava com grande frota, operava cargas e passageiros, contribuía para a integração e articulação regional, para o escoamento agrícola e industrial, e também para o transporte de passageiros de longa distância e de trens urbanos.

Até meados do século XX, as ferrovias paulistas desempenharam papel decisivo no desenvolvimento regional e nacional, mas, após 1945 e, principalmente com o plano de metas de Juscelino Kubitscheck, começou a se consolidar a “era rodoviária” no Brasil, com investimentos privilegiados nas rodovias em vez das ferrovias. Na década de 1990, no contexto mais amplo de desestatização do transporte ferroviário no Brasil, a FEPASA foi incluída no processo. Em 1995, o governo paulista contratou um estudo (com participação do Banco Mundial) para reestruturar a empresa, prevendo sua privatização. Em 1997, sob o governo do então governador Mário Covas, a FEPASA foi transferida à União como parte do ajuste das dívidas estaduais com o antigo Banco do Estado de São Paulo, o BANESPA. Em 1998, por meio de decreto presidencial, a FEPASA foi oficialmente incorporada à Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), e sua malha passou a se chamar “Malha Paulista”.


No leilão de concessão da malha paulista, realizado em 10 de novembro de 1998, venceu a Ferrovia Bandeirantes S/A (Ferroban), que assumiu a concessão a partir de 1º de janeiro de 1999 por 30 anos, posteriormente renovada por igual período, agora sob controle da Rumo Logística.


A privatização trouxe consequências imediatas para a malha ferroviária e para os serviços de passageiros: entre 1999 e 2001, os trens de passageiros da antiga FEPASA foram gradualmente desativados, todo o serviço de longa distância e muitos ramais regionais foram extintos. A tração elétrica que existia em trechos da FEPASA foi completamente abandonada, o modelo de operação passou a privilegiar somente o transporte de cargas com tração diesel, com vagões e locomotivas de grande porte, evidente reorientação para o lucro privado sobre transporte de massa.


Relatórios e debates públicos posteriores, como no âmbito de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), apontaram que a privatização resultou em “deterioração de boa parte da malha ferroviária” no Estado de São Paulo. Ramais abandonados, patrimônio estatal (estações, oficinas, subestações, imóveis urbanos) deixados à própria sorte, invasões, depredações. O transporte de passageiros de longa distância desapareceu quase por completo, enquanto milhões de toneladas de cargas ferroviárias passaram a ser transportadas por caminhões, com todos os ônus de custos, poluição, estradas saturadas e dependência do modal rodoviário.


Do ponto de vista técnico-operacional, embora a privatização anunciasse "modernização", os incentivos privados favoreceram apenas trechos com viabilidade de lucro, minando a função social da ferrovia como bem público e meio de transporte de massas. O fim dos trens de longa distância no Estado de São Paulo e o abandono progressivo da malha ferroviária representaram uma perda enorme para o país: eliminou uma alternativa de transporte popular eficiente, encareceu o transporte de pessoas e mercadorias, sobrecarregou as rodovias, aumentou a poluição e o custo logístico e diminuiu a integração e articulação entre regiões do estado.


Além disso, o desmonte da estrutura ferroviária implicou na demissão de milhares de trabalhadores, com perda de seus direitos e sem garantias de realocação. O patrimônio público, em muitos casos de valor histórico e urbanístico, foi completamente abandonado ou destruído. A entrega da malha ferroviária paulista ao capital privado não se traduziu em benefício social ou popular, mas sim em aprofundamento da dependência rodoviária, maior impacto ambiental, e destruição de um sistema de transportes que poderia servir como base para um modelo nacional de mobilidade e logística soberana.


A tragédia da FEPASA é paradigmática. A privatização não foi um “ajuste técnico”, ou uma “modernização neutra”, foi um ataque político ao caráter público e social da ferrovia, à classe operária ferroviária e ao direito do povo à mobilidade.


A concessão da malha e a priorização do transporte de cargas lucrativas evidenciam a lógica da acumulação privada: recursos públicos (trilhos, estações, patrimônio imaterial e material) transferidos para o capital privado, com fechamento de serviços de massa e abandono de regiões com menor rentabilidade imediata. A ferrovia deixou de ser bem comum e se converteu em mercadoria, ao mesmo tempo em que os prejuízos sociais, urbanos e ambientais recaíram sobre as classes trabalhadoras.


A história da FEPASA e seu desmonte demonstram que a privatização das ferrovias paulistas não significaram modernização, mas declínio, abandono, perda de direitos e desorganização social e geográfica. A “malha paulista” existe hoje apenas como malha de cargas, com partes reduzidas, sob controle privado, sem função social e sem compromisso com as demandas do povo. Retomar o transporte ferroviário de longa distância no Estado de São Paulo e no Brasil não pode ser visto como nostalgia, mas como uma demanda política de suma importância: reintegrar os trabalhadores ferroviários, recuperar a soberania logística, reverter o monopólio rodoviário e construir uma matriz de transporte que atenda aos interesses populares e à reconstrução da soberania brasileira.

Assine nossa newsletter

Receba em primeira mão as notícias em seu e-mail

Seu e-mail
Assinar
bottom of page