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Feminicídio, a face extrema do capitalismo

Movimento Revolucionário de Mulheres (MRM)

03 de dezembro de 2025


“No Brasil a gente tem uma epidemia de feminicídios, porque quando vai cruzar com os dados da saúde, que são maiores, chega a dar 10 por cada 100 mil mulheres, e isso é quando se começa a registrar uma epidemia”. Essas palavras foram ditas por Jackeline Ferreira Romio, coordenadora da pesquisa “Quem são as mulheres que o Brasil não protege?”, em audiência pública realizada no Congresso Nacional no último dia 26/11. Dez anos após a promulgação da lei do feminicídio, os assassinatos contra as mulheres aumentaram em número e em crueldade. De 527 casos registrados em 2015, saltou-se para 1455 em 2024, número que pesquisadores consensualmente julgam subestimados. Os brutais casos das jovens Tainara Souza de Santos, 31 anos, arrastada por um carro e que teve as pernas amputadas, e de Allane de Souza Pedrotti Mattos e Layse Costa Pinheiro que foram baleadas com diversos disparos no seu local de trabalho por um funcionário que não aceitava ser chefiado por uma mulher, são apenas os mais recentes de uma série infindável. Eles são a face humana de números frios: o Brasil é o país recordista de feminicídios na América Latina e no Caribe, um inferno onde uma mulher é estuprada a cada seis minutos.


Isto prova o desinteresse do Estado brasileiro em proteger as mulheres, sobretudo as mulheres pobres e negras, que são as vítimas em 68% dos casos de feminicídio. Afinal, longe de ser um poder neutro, situado acima das classes, o Estado é um aparelho de coerção que serve para preservar os interesses materiais das classes dominantes e toda a superestrutura cultural que visa legitimar estes interesses. Alicerçado sobre a escravização cruel dos povos originários e africanos, que teve como seu componente crucial – inclusive como estratégia de povoamento do vasto território – o estupro e a comercialização dos corpos das mulheres e de seus filhos, o Estado brasileiro é estruturalmente um Estado patriarcal. São os homens das classes dominantes os principais proprietários dos meios de produção e também os agentes políticos protagonistas nas mais altas esferas da administração. As poucas mulheres que galgam estes postos, são, quase sem exceção, de origem abastada, e não podem e não querem alterar o caráter das instituições que compõem. 


De outro lado, quando uma mulher branca e de classe média é vítima de agressão, há uma comoção pública que não se verifica quando o mesmo ocorre com mulheres negras dos estratos populares, embora estes sejam, como vimos, a esmagadora maioria dos casos. Não há, portanto, uma separação mecânica entre classe, raça e gênero, embora a dominação patriarcal anteceda em muito o próprio capitalismo e se configure por isso como uma instituição social completa, uma erva daninha terrivelmente enquistada no tecido social, inclusive no seio das organizações populares. Como dissemos em nossa Tese, a especificidade da condição feminina “reside no fato de que, enquanto os homens pertencentes às classes trabalhadoras (operários, camponeses, intelectuais e toda a enorme massa semiproletária), são oprimidos por pertencerem a uma classe dominada, as mulheres dessas mesmas classes também sofrem restrições no seu próprio estatuto de pessoa humana.” O machismo cotidiano, muitas vezes, naturalizado e invisibilizado, é apenas uma consequência dessa força milenar de opressão de metade da humanidade. É preciso estarmos vigilantes e combatê-lo onde quer que se manifeste. 


Também se observam, nesta epidemia social, os limites estreitos da lei penal. Com efeito, se a promulgação de leis mais duras bastasse para prevenir a ocorrência dos crimes, teria havido recuo no assassinato de mulheres, mas ocorreu exatamente o contrário. O mesmo se verifica no debate sobre o tráfico de drogas e os assaltos. Como reconhece a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em depoimento à Folha, de 2 de dezembro, o maior problema do combate à violência de gênero não é de legislação: “A pena para feminicídio é de até 40 anos de reclusão, a maior prevista no Código Penal. Precisamos de mais investimento em políticas públicas eficazes, que realmente protejam as mulheres”. Isto é tanto mais dramático ao se constatar que a maioria dos agressores têm ou já tiveram relações íntimas com as vítimas, o que torna impraticável uma abordagem concentrada apenas em polícia. O discurso populista penal, única abordagem da direita para a questão, não é mais do que isto mesmo: uma encenação sem efeito prático, efetuada pelos mesmos legisladores que tentam há pelo menos dez anos, de modo ininterrupto, criminalizar o aborto em caso de estupro, inclusive de crianças.   


Há um consenso entre as pesquisadoras e movimentos de mulheres de que a coerção, embora necessária, não basta. É preciso tanto a reeducação em larga escala dos homens quanto a existência de uma rede capilar de proteção às mulheres, que lhes garanta apoio material e espiritual para romper um ciclo vicioso de dependência financeira e afetiva, cujo ponto extremo são as agressões e o assassinato. Ora, ao Estado capitalista não interessa prover nem uma condição nem a outra. A cultura de subjugação das mulheres lhe é funcional ao mantê-las escravizadas no lar, o que aumenta o exército de reserva e favorece a diminuição dos salários; a chamada indústria pornográfica, alimentada por toda uma longa teia de depravação misógina, prostituição e tráfico humano, é uma das principais fontes de lucro e também alternativa de escapismo para uma parcela da sociedade colocada à margem da vida social. Quanto às redes de proteção, toda a tendência das últimas décadas, exacerbada com a ascensão da extrema-direita, vai no sentido inverso, ou seja, de desmanche não apenas institucional do chamado “Estado de bem estar” bem como de todos os tecidos de solidariedade social. Na verdade, como defendemos em nossa Tese, “a história provou que a sorte das mulheres está indissoluvelmente ligada à sorte do conjunto dos oprimidos. A cada auge da revolução, as mulheres progrediam; a cada época de reação, retrocediam. 1” 

 


A mobilização política das mulheres: uma tarefa inadiável


No caso da violência psicológica, sexual e física contra as mulheres, não basta denunciar a inépcia do Estado reacionário. É preciso fazê-lo, sem dúvida, demarcando a cada passo com o feminismo liberal, na medida em que ele ilude a maioria das mulheres de que basta a proteção legislativa para que seus direitos sejam assegurados. Contudo, se não será possível extinguir a opressão patriarcal senão através da construção do socialismo, é possível e necessário trabalhar desde já para salvar todas as vidas possíveis de serem salvas, ganhando as mulheres em grande número para a luta revolucionária. Essa questão não pode ser entendida como “das mulheres”, ao contrário, é parte integrante do programa revolucionário. Por outro lado, às mulheres com maior consciência política cabe vanguardear este processo de luta, porque ele, como qualquer outro, não se dá sem confrontação e esforços ativos. Nenhuma força benigna “concederá” a emancipação das mulheres: é preciso que elas mesmas a conquistem. Neste esforço, é preciso trabalhar em duas frentes, isto é, tanto com reeducação como com coerção. 


Quanto à reeducação –e dizemos reeducação porque partimos do princípio de que, no capitalismo, a educação recebida no seio da família e na escola tende a reproduzir os valores patriarcais –, devemos sublinhar firmemente e de modo inequívoco que o marxismo não admite nenhuma discriminação, exceto a de classe. Quem relativize qualquer forma de segregação entre os oprimidos, de cunho racista, sexual de gênero ou outro é um oportunista que trabalha para dividir os trabalhadores e atua na prática como um agente da reação. Apenas à burguesia interessa produzir e perpetuar segregações no seio do povo. É preciso ser firme e intransigente quanto a este ponto. 


No seio das organizações populares, é preciso praticar permanentemente a crítica e a autocrítica, como forma de esclarecer aos companheiros atitudes – que a eles no mais das vezes parecem “naturais” – de se impor sobre as mulheres, seja no uso do tom de voz, na interrupção das suas falas etc. Mesmo companheiros com elevada consciência tendem a reproduzir tais práticas se a organização relaxa a sua vigilância, porque, afinal, todos nós somos seres sociais. É por isso que dizemos que, se combater o patriarcado é tarefa comum da luta, ela só pode ser cumprida sob a liderança das mulheres. Não há que se temer excessos: se a linha da organização for consequentemente revolucionária, assentada em princípios marxistas sólidos, ela saberá corrigir erros. Num contexto de brutal discriminação das mulheres, o fato de que elas eventualmente excedam nas suas críticas deve ser encarado como problema secundário. Mais grave é que elas se retraiam e não tomem a metade dos céus em suas mãos.


Ainda no tópico reeducação, particularmente no que toca à juventude, é preciso combater a pornografia e a prostituição, manifestações de decadência cultural típicas da fase de aguda crise geral do sistema imperialista. Não há pornografia sem objetificação e degradação das mulheres. Mesmo as suas formas “brandas” não passam da face “humanizada” de uma rede brutal que se alimenta do tráfico humano e da pedofilia, perpetuadora dos piores valores contra as mulheres. Ou seja, são apenas um artifício de legitimação. De fato, a subjugação projetada sobre os corpos das mulheres é simplesmente uma derivação das piores ideologias e valores colonialistas contra os povos oprimidos. Quanto à prostituição, é inaceitável encará-la como um “trabalho assalariado”: a mulher nesta condição não vende a sua força de trabalho, mas o seu próprio corpo, razão pela qual sua condição está mais próxima a de um escravizado que de um proletário moderno. Do ponto de vista histórico, esta atividade é uma remanescência da Antiguidade! Como alguém em sã consciência pode naturalizar uma prática tão anacrônica? O remédio para a solidão não está em fomentar relações artificiais, mas em tomar parte ativa na vida social. 


Ao lado da reeducação, o Movimento Revolucionário de Mulheres defende o direito das mulheres à autodefesa. Esta autodefesa passa por organizar redes de apoio à mulheres vítimas de violência, cuja condição mínima é a possibilidade da sua subsistência. Assim, ao organizar a vida cotidiana das mulheres, partindo da sua dimensão mais básica que é a alimentação, devemos ver nisso também uma forma de autodefesa, isto é, de construção embrionária de uma nova forma de organização social. É preciso apoiar, não só com discursos, mas na prática, mulheres que queiram se divorciar, que queiram interromper a gravidez, que enfrentem o abandono na velhice e tantas formas invisibilizadas de violência. Deve-se disseminar ao máximo cursos de autodefesa para as mulheres, em todas as suas formas. Nos casos mais graves de agressões, o autor deve ser sancionado pela coletividade, de forma proporcional ao dano infligido. Ao contrário da justiça burguesa, a justiça popular deve ser rápida, barata, eficiente e implacável. Na verdade, dadas as características destes episódios, somente uma organização popular estruturada por local de moradia pode dar conta de preveni-los e castigá-los. 


Abaixo o Estado reacionário, assassino de mulheres!

Combater o patriarcado é tarefa de todos, sob a liderança das mulheres!

Pelo direito das mulheres à autodefesa!


1 “Sem mulheres, sem revolução!”. Tese do Movimento Revolucionário de Mulheres (MRM), link: https://novomepr.com.br/wp-content/uploads/2025/03/Sem-mulheres-sem-revolucao-MRM.pdf 

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