Não existem ateus no Brasil
- Igor Mendes
- 8 de jun.
- 6 min de leitura

O número de ateus tende a ser historicamente subestimado, pelo preconceito relacionado a esta condição. Quando o Censo Demográfico do IBGE (2022), nos seus dados preliminares sobre religião, não traz dados detalhados acerca dos brasileiros que se declaram ateus, ele fere não apenas um preceito científico básico –como sociólogos, historiadores, antropólogos etc, poderão estudar este grupo sem dados confiáveis? – como confirma o constrangimento histórico à liberdade de não crer e um limite evidente ao princípio republicano da laicidade do Estado. Esperamos que no segundo semestre, com a publicação dos dados desagregados, estes índices sejam devidamente apresentados. Até lá, para efeito prático, segundo o IBGE, não existem ateus no Brasil.
O primeiro e até aqui único Censo que separou os ateus do conjunto mais amplo de “sem religião” foi o de 2010. Ele revelou que os ateus –ou seja, pessoas que declaram não crer em nenhuma divindade – representavam 0,3% da população brasileira, equivalente a 615 mil pessoas. São números significativos: equivaliam ao mesmo percentual de pessoas que se declaravam umbandistas ou candomblecistas naquele levantamento. O Censo de 2010 também fez a distinção, que nos parece absolutamente necessária, entre ateus e agnósticos (pessoas que, via de regra, não creem ser possível afirmar a existência ou inexistência de Deus): estes representavam àquela altura 124 mil pessoas.
Naturalmente, que o número de pessoas que se declaram sem religião abrange um universo bem maior: eram 8% da população brasileira em 2010, e são agora 9,3% (crescimento expressivo). Verificar as complexas e sutis relações entre capitalismo e religiosidade ou irreligiosidade é, além de um problema científico, uma questão política de enorme importância. Resta-nos, por enquanto, a mera suposição de que, ampliado o universo dos brasileiros “sem religião”, tenha também se ampliado o número dos que se declaram ateus. De algum modo, esta suposição se baseia em uma tendência não só brasileira como mundial: segundo uma pesquisa do instituto Gallup International, divulgada em 2014, que entrevistou mais de 50 mil pessoas em 57 países, o número de indivíduos que se dizem religiosos caiu de 77% para 68% entre 2005 e 2011, enquanto aqueles que se identificaram como ateus subiram 3%, elevando a 13% a proporção desse segmento¹. É até hoje a pesquisa mais abrangente sobre tal tema.
Há uma distinção enorme entre uma pessoa dizer-se sem religião – o que pode incluir pessoas teístas, embora não vinculadas a uma organização religiosa específica – e se declarar ateia, o que pressupõe uma definição filosófica e prática bem determinada.
Com efeito, declarar-se “ateu”, e não agnóstico ou meramente desengajado religiosamente possui, por definição, uma forte carga militante, em defesa do materialismo científico (que alguns estudiosos do tema chamam de “ateísmo forte” ou “explícito”). Falando sobre o recente engajamento de cientistas num movimento ateísta declarado, classificado por alguns como “neo-ateísmo”, de que o nome mais renomado é o do microbiologista Richard Dawkins (autor do best-seller “Deus, um delírio”), disse o pesquisador Flávio Gordon:
Para eles, toda a realidade é material e, sendo assim, apenas a ciência estaria equipada intelectualmente para oferecer informações sobre ela. Nesse sentido, a ciência não poderia ser tímida, enclausurada confortavelmente no laboratório, uma vez que representa uma determinada cosmovisão, naturalista e materialista, em confronto com uma cosmovisão – sobrenaturalista²
Não é aqui o espaço para discutirmos com a profundidade merecida a distinção entre o ateísmo cientificista, de corte liberal, representado por Dawkins, que constrói uma visão de mundo integral baseada na contraposição entre ciência e religião, e o materialismo marxista, proletário, voltado ao desaparecimento das condições materiais que sustentam a religião, ou seja, a abolição da sociedade de classes por meios revolucionários. Processo no qual os homens adquirem consciência de si mesmos como agentes da transformação da sociedade e da natureza, e portanto dão cabo de qualquer alienação. Do mesmo modo, nos parece equivocada a “fusão” de agnosticismo e ateísmo, defendida, por exemplo, pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), que em seu portal responde afirmativamente à pergunta “Todo agnóstico é ateu?”. Para a tradição marxista ortodoxa, o agnosticismo (e o ceticismo de maneira geral, cujas raízes remetem a pensadores como Immanuel Kant e David Hume) não é um materialismo consequente. Ele não nega a possibilidade de Deus, mas sim a possibilidade de que tal juízo possa ser formulado pelos homens – ou seja, ele advoga uma espécie de suspensão do juízo. Por isso, Lênin, em sua obra clássica “Materialismo e empiriocriticismo” (1908), em que rechaça de maneira categórica qualquer possibilidade de conciliação entre marxismo e religião, definia o agnosticismo como “a negação da realidade objetiva que nos é dada na sensação”, porque recusa a possibilidade de chegar ao conhecimento pleno da verdade a partir desta mesma realidade objetiva³.
O que queremos destacar por ora é que o apagamento estatístico é apenas um prolongamento dos preconceitos e constrangimentos constantes, sutis e descarados, impostos aos ateus. Na verdade, tendo acusado sempre os comunistas de abolirem a liberdade religiosa, são as classes burguesas que suprimem e perseguem mesmo o direito básico de não crer. Diga-se de passagem, isto também se estende à perseguição histórica a grupos religiosos minoritários, não-cristãos, de que o fechamento de terreiros a mando de traficantes evangélicos é um exemplo ao mesmo tempo típico e grotesco dos dias atuais. Tal situação é particularmente grave em países de passado colonial como o Brasil, nos quais a república surgiu como mera “evolução” da monarquia, sem a ruptura revolucionária com o passado escravista-feudal. É o que declara Daniel Sottomaior, presidente da ATEA, em artigo para o portal The Intercept:
A separação entre religião e Estado no Brasil é quase uma causa perdida. A direita não a quer. A esquerda diz que quer, mas, para ser bem eufemista, é de uma enorme seletividade em suas demandas. O que fazem esses políticos progressistas contra os símbolos religiosos em repartições públicas, a inscrição religiosa no dinheiro e o uso de verbas públicas para eventos, obeliscos e até praças religiosas? Cadê os discursos inflamados contra a imunidade tributária das igrejas e o ensino religioso em escolas públicas?⁴
Vivemos atualmente uma verdadeira involução neste terreno, com a religião e a política entrelaçadas no Brasil como não se via desde os tempos do Império. Não à toa, até hoje, às mulheres são interditados direitos reprodutivos básicos (como o de decidir pela interrupção da gravidez indesejada) com base em argumentos religiosos. Do mesmo modo, quantos preconceitos deve enfrentar uma criança, criada em família ateia, ao se recusar a participar de uma oração na escola? Como se vê, é uma discussão com inúmeras consequências práticas, de que o apagamento estatístico é apenas mais um episódio.
No filme Miss Marx (2020), centrado na relação entre Elanor (Tussy) Marx, filha caçula de Marx e destacada militante socialista, e Edward Avelling⁵, logo no início há uma cena em que o neto de Marx questiona à tia, após o enterro de seu avô, se ela estava segura da inexistência de uma vida após esta. Após afirmar que sim, e diante de uma certa desilusão da criança, Eleanor se aproxima e lhe consola, dizendo que esta convicção na verdade torna a vida mais especial, porque única – acrescentando que, se fosse verdade tudo o que os religiosos dizem, o “vovô Marx” estaria naquele instante ardendo no inferno... Num mundo assolado pelos dramas do crescimento do militarismo e do fascismo, e também das mazelas cotidianas no adoecimento mental e do desemprego, as pessoas mais do que nunca necessitam de princípios organizadores para as suas vidas, e também de consolo e conforto, espiritual e material. Nós, ateus, temos uma tarefa nada fácil, embora visível e comprovada em toda parte: demonstrar que nos diferentes ritos religiosos, não é a presença hipotética das divindades, mas a muito palpável companhia e solidariedade humana (ainda que mediada pela música, pelas orações, pelos risos e pelos prantos) o que conforta e dá forças para enfrentar toda e qualquer adversidade.
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²Flávio Gordon, “A cidade dos Brights: Religião, Política e Ciência no Movimento Neo-Ateísta”. Tese de Douorado ao Museu Nacional/UFRJ, 2011.
³V.I. Lênin, “Materialismo e empiriocriticismo”, editorial Estampa, Lisboa, p.175.
⁵Disponível, com legendas em espanhol, em: https://www.youtube.com/watch?v=RS-ePbsUwTA. O filme deve ser compreendido estritamente nesta chave do relacionamento entre Eleanor e Edward, pois de fato deixa em segundo plano toda a enorme contribuição política e teórica de Tussy ao marxismo em geral (coube a ela organizar a publicar a primeira edição das Correspondências, bem como de uma série de escritos de Marx) e à questão feminina em particular.