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O barato da sala de aula

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Entre corredores, é comum a expressão “o barato da corrida”, associado à sensação de bem estar que se instala após o esforço. É verdade que, no percurso, imprevistos podem acontecer: motoristas que desrespeitam as ciclovias, o asfalto esburacado em alguns pontos, pode chover torrencialmente no meio do caminho. Às vezes o trajeto flui como música, outras, o tempo demora a passar. Não há necessariamente final feliz: lesões acontecem, roubos também... Seja como for, é bom quando termina. Talvez ocorra algo parecido na rotina de um professor. É, uma espécie de barato da sala de aula, do qual nos tornamos dependentes depois de um tempo, admitamos ou não.


Seria um erro dizer que dar aulas é algo intuitivo. (Pedagogos, deem o fora enquanto é tempo). Mas seria ingênuo supor que tudo sai como planejado: em nenhum curso de licenciatura alguém te ensina a escrever uma bela letra no quadro branco, ou a preencher diário e fazer “colagens” imperceptíveis a olho nu¹. E o barulho: nunca havia lido em lugar nenhum o quanto a escola é um espaço barulhento, em que gritos de inspetores, portas batendo e as nossas próprias vozes a disputar as atenções adolescentes se confundem num todo perturbador e indiscernível. Sério, apenas após alguns anos em sala de aula, eu, que não vivo sem música ambiente, aprendi a valorizar o poder recuperador de alguns minutos de silêncio.


No meu primeiro tempo sozinho com uma turma, numa escola de periferia, no Fundamental II, eu achei uma boa ideia dispensar os alunos de me chamarem de “tio” e também de pedirem para ir ao banheiro. Vamos lá, que tal exercitar um pouco daquela autonomia que aprendemos nos bancos universitários, ou nos áureos tempos em que achávamos que a realidade do magistério eram os belos cursos de pré-vestibular social? O resultado foi um monte de vozes falando ao mesmo tempo, metade da turma do lado de fora, uma briga na fila do banheiro. A expressão incrédula dos meus colegas mais experientes foi suficiente para me impedir de tentar uma nova experiência abruptamente libertária pelo menos tão cedo. (A inspetora foi mais sutil: ela perguntou se eu estava com febre).


Há vários primeiros nessa profissão. Por exemplo, o primeiro tiroteio. Eu estava de costas, escrevendo no quadro, quando escutei um barulho ao longe. O escapamento de uma moto, talvez, agora que “dar grau” se tornou esporte olímpico em certas localidades do Rio de Janeiro. Mas, afinal, isso não pode ser mais importante do que explicar a pré-adolescentes quais são os elementos do mapa, ora, ora. Quando me viro, os alunos já estão abaixados sob as carteiras. Eu demoro a entender aquilo, até que o Moisés, um aluno espichado com a voz fina, me instrui: “Professor, se abaixa também”. Claro, é o que eu faço, enquanto observo o Caveirão da Polícia Militar manobrando bem em frente à escola. Por óbvio, os meus alunos estão muito mais habituados a essa rotina do que eu. Depois, saímos da sala, e a custo mantemos eles protegidos atrás das paredes do corredor, porque a esta altura este é apenas um maravilhoso tempo vago propício para correr e brigar como qualquer outro...




O dia a dia também é feito das pequena solidariedades, às vezes presentes num gole de café, num pedaço de bolo, num mero sorriso. A rotina é muito puxada para todos: há os que praticamente vivem na escola –funcionários, professores de apoio, os raros regentes de 40h semanais –, onde passam mais tempo que nas suas casas; há os que trabalham um pouco em duas, três, quatro, cinco escolas diferentes, amontoando infindáveis tempos para formar um salário. Para estes, a vida profissional acaba sendo um pouco mais solitária, passada em grande parte entre corredores, sejam de salas ou de veículos. A explicação desta rotina selvagem é bastante simples: segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2024, o salário médio dos professores das redes públicas, com ensino superior completo, chegou a R$ 4.942, valor que é 86% do rendimento de outros profissionais assalariados com o mesmo nível de escolaridade (R$ 5.747). Segundo a mesma fonte, a modalidade de trabalho temporário (ou seja, com menos garantias, inclusive no terreno sindical) disparou nos últimos dez anos, de modo que atualmente mais da metade dos professores das redes estaduais são contratados deste modo. As condições precárias de trabalho adoecem os meus colegas: com frequência, para assinar o ponto, eu preciso desmatar uma floresta de atestados médicos antes de chegar ao meu nome.


Há coisas que te ajudam a viver – normalmente, as mais simples. Embora tenha dito, semana após semana, que bebo café sem açúcar, a Cleide, uma inspetora negra e corpulenta que tem mais autoridade sobre os alunos do que a diretora, sempre “esquecia” e me dava a bebida doce. Onde já se viu dar café amargo para os nossos amigos? Para ela, aquilo seria uma desfeita, ainda que fosse a meu pedido. Depois de entender o impasse, nunca mais falei nada, e passei a engolir de bom gosto doses semanais de açúcar compulsório (claro que, de vez em quando, furtivamente, eu mesmo me servia uma boa xícara de café amargo).


Ainda na graduação, me lembro de uma professora veterana que dizia, quando lhe perguntavam por que ela não se aposentava, que a sala de aula é uma cachaça, lugar onde se entra e deixam-se do lado de fora os problemas. Depois, com a prática assídua e repetitiva, compreendi o que ela quis dizer. É claro que às vezes estamos alegres ou tristes, às vezes nossos planos pessoais dão certo ou fracassam miseravelmente, mas ao menos enquanto se quer explicar uma matéria, nada mais importa a não ser... aquele “abençoado” sentado na última cadeira que não fecha a boca enquanto eu falo. Respiro, falo uma, duas vezes. Na terceira, dou a carteirada infalível: estamos no último tempo e eu digo que só liberarei a turma quando a matéria estiver dada, ainda que após o horário. Daí para a frente, são os próprios colegas que intervém diante das interrupções. Maquiavélico, talvez? Prefiro pensar que a sala de aula é como um jogo: ganha-se um pouco e perde-se um pouco, autoridade que não se exerce com despotismo.


Outro dia, na rua, um aluno me reconheceu. Disse que, quando eu saí (era uma escola em que eu fazia hora extra) a turma “ficou bolada com o novo professor, era dez a zero eu”. Claro que eu fiquei bastante orgulhoso e até chamei um amigo que estava comigo para ouvir o depoimento em primeira mão. Não faço nada demais: apenas me lembro muito bem como é estar na pele deles, e os trato como gente inteligente e autônoma, como gostava que fizessem quando eu próprio era apenas um adolescente petulante e rebelde. Engraçado imaginar que os meus professores também sentiam a mesma satisfação quando eram reconhecidos, há milhares de anos atrás; que eles também sorviam cada minuto do intervalo no sofá da sala dos professores, entre notícias do sindicato ou inofensivas maledicências. Curiosamente, também descobri uma coisa óbvia e incrível, desde que me tornei um “deles”: nós professores ficamos tão felizes com o fim do expediente quanto os nossos alunos. A diferença é que, como adultos, não ficaria bem se saíssemos correndo e pulando pelo pátio afora, assim que o sinal batesse. Não ficaria, certo?


  1. Colagem: remendos no diário, quando, para evitar rasura, literalmente se recorta um pedaço em branco de outro diário e se cola sobre a parte que se quer corrigir. Reconhece-se o tempo de experiência de um professor pela habilidade e rapidez com que é capaz de fazer uma colagem. Sim, isso mesmo: em pleno século XXI, em boa parte das escolas públicas as informações cruciais sobre notas, frequências e outras ocorrências são registradas manualmente em folhas de papel.

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