Passa boi, passa boiada
- José Rivera Krangola
- há 13 horas
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No dia 21 de Maio de 2025, após mais de 20 anos de tramitação foi aprovado no plenário do Senado Federal, por 54 votos favoráveis e 13 contrários, o projeto de lei 2.159/2021 que dispõe sobre o licenciamento ambiental, regulamentando o inciso IV do Parágrafo 1º do art. 225 da Constituição Federal, cujo texto diz o seguinte:
Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
Parágrafo 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade.
Chamado de PL da Devastação ou “a boiada das boiadas”, alusão à fala do ultrarreacionário Ricardo Salles, então ministro do meio ambiente do capitão-do-mato Bolsonaro, na famigerada reunião ministerial de 22 de Abril de 2020 em que defendeu aproveitar que todas as atenções estavam voltadas para a pandemia de COVID-19 (que na ocasião já havia ceifado a vida de 2.924 brasileiros)¹, para passar a boiada e mudar as regras na área ambiental para beneficiar o latifúndio, as empresas de mineração e os “empreendimentos” da burguesia nacional e estrangeira no Brasil.
Passados pouco mais de cinco anos e a menos de seis meses da COP 30 (30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) que ocorrerá em Belém do Pará, a hora de passar a boiada ou de fazer uma “baciada” de alterações nas regras de proteção ao meio ambiente chegou. Esse verdadeiro golpe contra o direito do povo brasileiro à água limpa, ar puro, solo fértil, alimentos saudáveis e clima estável ocorre não durante o governo do genocida Bolsonaro, mas sim com Lula no Palácio do Planalto, que na farsa eleitoral de 2022 prometeu cuidar dos mais pobres, agir para mitigar as mudanças climáticas, proteger a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado, A Mata Atlântica, a Caatinga e o Pampa².
A mudança na legislação pode abrir caminho para a implementação de projetos com grande potencial de causar danos irreversíveis ao meio ambiente do Brasil. Um dos trechos incluídos e aprovados no Senado cria uma Licença Ambiental Especial, com rito simplificado, para projetos considerados prioritários pelo Executivo. Alguns projetos que seriam contemplados com o PL da Devastação são apresentados a seguir:
BR-319
A BR-319, que liga Porto Velho/RO à Manaus/AM cortando a Amazônia diagonalmente de baixo para cima, da esquerda para a direita, tem extensão de 880 km dos quais quase a metade fica intrafegável na temporada de chuvas. Em novembro de 2020, o então ministro da Infraestrutura e atual governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas anunciou que a pavimentação da rodovia era uma das prioridades do governo Bolsonaro. A estrada atravessa áreas de floresta conservada como: (i) a Reserva Extrativista do Lago Capanã Grande, com 300 mil hectares; (ii) o Parque Estadual do Matupiri, com mais de 500 mil hectares; e (iii) o Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, com mais de 800 mil hectares.

De acordo com estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)³, estariam ameaçados pelo empreendimento 40 unidades de conservação, 6 milhões de hectares de terras públicas e 50 terras indígenas, em que vivem inclusive povos isolados como os Katawixi, os Kagwahiva, os Hi-Merimã, os Maici, os Mucuim e os Mamoriá Grande. Toda essa área já é alvo da ação de grileiros que promovem invasões, assassinatos de camponeses e indígenas, exploração ilegal de madeira e pesca, etc. Com o asfaltamento da BR-319, o desmatamento acumulado da região seria quatro vezes maior que a média histórica da Amazônia. Além da perda da vegetação a obra afetaria a regulação das chuvas em outras regiões do país e implicaria no aumento das emissões de gases de efeito estufa.
Em setembro de 2024, Lula em visita ao município de Mainaquiri/AM declarou “Essa estrada agora vai começar a ser feita”, se referindo à retomada da obra na BR-319. Pode soar contraditório o fato do chefe do Estado brasileiro ter feito essa declaração em visita ao Amazonas para anunciar medidas de combate à pior seca da história da região, mas isso é mais uma atitude oportunista do petista⁴. Lula ratificou compromisso com o governador Wilson Lima (União Brasil), bolsonarista até a medula, que pleiteia uma vaga no Senado em 2026.
Ferrovia Ferro-Grão
Com quase 1.000 km de extensão, a ferrovia Ferrogrão (E-70) foi projetada para conectar o município de Sinop (MT) à Itaituba (PA) para o transporte de soja e milho realizado atualmente por 1,8 mil carretas que estacionam todo dia nos portos do Rio Tapajós, no distrito de Miritituba.
A ferrovia pode impactar 4,9 milhões de hectares onde se encontram 48 municípios e pelo menos seis terras de povos indígenas, dentre eles os Kayapó, os Munduruku e os Panará, e também os territórios de três povos isolados, os Pu’rô, os Isolados do Iriri Novo e os Mengra Mrari. O desmatamento causado pode chegar a uma área equivalente ao município de São Paulo servindo ao objetivo não declarado da ferrovia que é a expansão da área plantada no seu entorno.

Concebido pelas multinacionais Bunge, Cargill, Amaggi⁵ e Dreyfus (maiores comercializadoras de grãos no Brasil), em conluio com o latifúndio, a ferrovia Ferrogrão foi encampada pelo governo de Dilma Roussef em 2014, ganhou fôlego com Michel Temer, sendo que Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas tentaram implementá-la “Por um caminho ou por outro”⁶, até chegar ao governo Lula 3.0, cujos ministros afirmam se tratar de projeto ambientalmente correto⁷.
Os defensores da ferrovia Ferrogrão, oportunistas representantes dos interesses das multinacionais e do latifúndio, estão papagueando aos quatro cantos que o projeto irá reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). Dizem que um trem com 160 vagões é capaz de substituir 400 caminhões⁸. Mas esses arautos do “progresso” desconsideram em seus cálculos o desmatamento advindo da construção da ferrovia que emitiria no mínimo 15 vezes mais GEE do que o poupado na substituição dos caminhões pelos trens⁹.
O trecho da Ferrogrão que atravessa o estado do Pará é de 377 km. Mestre da velhacaria como é, Lula nem ao menos vai corar a cara em seus discursos apresentando os “resultados positivos” no combate ao desmatamento e na redução das emissões de gases que agravam as mudanças do clima durante a COP 30.
Exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas
Estimada em 30 bilhões de barris de óleo e gás, a reserva da Foz do Rio Amazonas pode colocar o Brasil como o 4º maior produtor mundial de petróleo. Alvo de interesse de multinacionais do setor como as estadunidenses ExxonMobil e Chevron, e a chinesa CNPC, a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas está no rol das empreitadas que terão o caminho pavimentado pelo PL da Devastação.
Os impactos desse “empreendimento” transcendem as fronteiras do Brasil uma vez que a região da Foz do Amazonas é fundamental para a manutenção do ecossistema do Oceano Atlântico ¹⁰. A atividade na região poderá impactar os trabalhadores que sobrevivem da pesca artesanal, bem como comunidades indígenas que mantêm relações históricas com os rios e o oceano, e já enfrentam uma enorme pressão do garimpo e da exploração de madeira em suas terras, algo que será agravado com o empreendimento petrolífero.
Existe a falácia da compensação financeira obtida com a exploração dos recursos naturais (royalties) que melhoraria a vida do povo, mas esse dinheiro só serve pra encher os bolsos de grandes empresários e da casta política. A promessa de geração de empregos diretos é outro engodo, haja visto que a maioria dos trabalhadores se dedicam a pesca, atividades extrativistas ou à agricultura camponesa, não possuindo capacitação para exercer funções no setor de exploração de petróleo.
De acordo com pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), nenhuma decisão sobre exploração de petróleo na região pode ser tomada sem dados científicos¹¹. No caso de vazamento de petróleo os ecossistemas da região da Foz do Rio Amazonas absorverão os hidrocarbonetos e a dificuldade de limpar os manguezais, florestas de várzea, áreas úmidas e praias é altíssima. Especificamente no Amapá, o litoral é composto por praias de lama, e não de areia como na maioria do litoral brasileiro.
Às vésperas da COP 30, em que será pautada a eliminação gradual de combustíveis fósseis, maiores responsáveis pela emissão de dióxido de carbono (CO2), Lula pode sancionar uma lei que libera a exploração de petróleo e gás nessa região impactando de forma drástica a biodiversidade e a vida do povo.
O ardil de Alcolumbre
Nos últimos tempos muito se tem falado sobre a preservação do Estado democrático de direito. Algumas perguntas devem ser feitas sobre esse mantra repetido exaustivamente por oportunistas e por ingênuos: (i) Estado de quem e para quem?; (ii) Direito de quem e para quem?; e (iii) Democrático para quem? Com toda a certeza esse Estado só serve às classes dominantes de latifundiários, banqueiros e grandes empresários nacionais e estrangeiros. Às classes trabalhadoras e às massas marginalizadas esse Estado só oferece exploração, miséria e repressão. O Congresso Nacional, que alguns denominam como a casa do povo, é um covil de canalhas e picaretas a serviço dos interesses daqueles que sustentam esse Estado em decomposição.
Davi Alcolumbre (União Brasil), senador amapaense, reassumiu o posto de presidente do Senado em 1º de fevereiro de 2025. Um dos principais entusiastas da exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, promoveu mil artimanhas para aprovar o PL da Devastação. Uma de suas primeiras ações como chefe do Senado foi convocar Confúcio Moura (MDB/RO) e Tereza Cristina (PP/MS), relatadores da proposta nas Comissões de Meio Ambiente, e de Agricultura e Reforma Agrária, respectivamente, para que chegassem a um consenso sobre a matéria que altera o licenciamento ambiental. Para pavimentar o caminho para que o PL chegasse o mais rápido possível ao plenário, Alcolumbre fez tramitar simultaneamente a matéria nas duas comissões, algo que não é usual no parlamento. O resultado da manobra de Alcolumbre foi um relatório ao gosto dos latifundiários, empresas de mineração e empreiteiras, e que fere de morte a proteção do meio ambiente.
A armação do presidente do Senado contou com a conivência, negligência e (“má”) vontade política de representantes do governo federal como os petistas Fabiano Contarato (presidente da Comissão de Meio Ambiente), Jacques Wagner (líder do governo na casa) e Randolfe Rodrigues (líder do governo no congresso). Sobre cada um desses senadores do partido dos “trabalhadores” cabe uma nota rápida:
Contarato – demonstrou toda a sua tibieza e oportunismo políticos, ao ceder à pressão de Alcolumbre que deu um recado claro: ou o PL da Devastação andava por bem ou andaria por mal. O parlamentar capixaba se apalavrou com o poderoso chefão do Senado e colocou a proposta em votação na Comissão de Meio Ambiente.
Jacques Wagner – fez uma ceninha mambembe e conseguiu adiar a votação do PL em duas semanas. No dia 21 de maio não estava no plenário na hora em que a matéria foi votada. Seu voto contra a proposta foi computado remotamente (tudo de acordo o script).
Randolfe Rodrigues – foi a prova da covardia do oportunismo. Preferiu se ausentar da sessão para não votar, e deu procuração à Alcolumbre que assim justificou sua falta: “[Randolfe Rodrigues] ainda há pouco estava aqui e se manifestou para que eu pudesse externar que ele iria votar contrariamente ao relatório apresentado”¹¹. Uma típica chanchada. Cabe destaque neste circo de horrores aos discursos de apoiadores descarados do PL da Devastação como Omar Aziz (PSD/AM), Marcos Rogério (PL/RO), Luis Carlos Heinze (PP/RS), que todos já sabem qual é a música que cantam¹².
Com o PL da Devastação aprovado, Davi Alcolumbre leu discurso em que declarou: “Dormirei hoje com a sensação de dever cumprido”. Dois dias depois o parlamentar receberia das mãos do ministro da justiça de Lula, Ricardo Lewandowski, a Medalha de Ordem do Mérito, no grau de Grã-Cruz, pelos relevantes serviços prestados a toda a sociedade brasileira¹³.
Acordo “tácito” entre Lula e Alcolumbre
A omissão e conivência em relação ao PL da Devastação também veio da antessala do gabinete de Lula. Na tarde de 12 de maio (nove dias antes da votação), representantes do Ministério do Meio Ambiente estiveram no Palácio do Planalto convocados pela ministra-chefe da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann. Estavam munidos de argumentos para tentar “despiorar” a matéria em trâmite no Senado. Na ocasião, Hoffmann preferiu tratar apenas de um assunto: o desbloqueio de 70 mil hectares de terra desmatadas para que os latifundiários da Amazônia pudessem acessar os recursos do Plano Safra¹⁴. Mais de 30 mil hectares das áreas com irregularidades estavam no estado do Pará, e foi o governador do estado-sede da COP 30, Helder Barbalho, que encaminhou o pleito diretamente à Lula. Missão dada, missão cumprida, a reunião ocorria para resolver o imbróglio para o “agronegócio”. Quando uma oportunidade de pautar o PL da Devastação apareceu, a titular das relações institucionais do governo federal indicou que o assunto fosse tratado pelas assessorias de ambos os ministérios e terminou a conversa. Os técnicos do Ministério do Meio Ambiente não foram chamados para conversar com os técnicos das relações institucionais. O episódio evidencia a prioridade: para atender ao latifúndio há espaço na agenda, para a defesa do meio ambiente que garante qualidade de vida para o povo, não.
Mas por quê Lula que enquanto candidato em 2022 prometeu combater o desmatamento, fortalecer a fiscalização ambiental, especialmente na Amazônia, e cumprir as metas das Conferências das Partes (COP) da ONU, foi omisso e conivente na tramitação e votação do PL 2.159/2021 – o maior golpe contra a proteção ambiental no Brasil nas últimas décadas – no Senado?
Além do compromisso com o latifúndio e as empresas de mineração, o PL da Devastação irá destravar obras do PAC (orçado em R$ 1,7 trilhão e um dos carros-chefes para 2026)¹⁵ cuja maioria necessita de licenciamento ambiental. Na Amazônia Legal, por exemplo, estão previstas obras do PAC em 277 áreas protegidas¹⁶.
Cenas dos próximos capítulos
O PL 2159/2021 vai à Câmara para análise final dos deputados. Concluído esse trâmite ele será encaminhado para Lula que terá 15 dias úteis para sancionar ou vetar o texto total ou parcialmente. Será que Lula terá a coragem de vetar o PL da Devastação? Vetará a matéria depois de seu governo leiloar 19 áreas para exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas?¹⁷.
Caso vete algum artigo do PL da Devastação, esse veto seria apenas simbólico. O parlamento teria 30 dias corridos para analisar e votar o(s) veto(s) do chefe do executivo. Para derrubar um veto presidencial são necessários 257 votos entre os deputados e 41 entre os senadores, maioria absoluta (50%+1). Na primeira rodada na Câmara dos Deputados, a matéria foi aprovada em 13 de Maio de 2021, com 290 votos a favor e 115 contrários¹⁸. No último dia 25 de junho ficou patente a capacidade de manobra de Lula na Câmara dos Deputados com a derrubada do seu decreto sobre o IOF, foram 383 votos contra e apenas 93 a favor¹⁹.
Caixa de Pandora e a Esperança
Se compararmos a aprovação do PL da Devastação com a abertura da caixa que Pandora ganhou dos deuses, liberando todos os males e infortúnios, a esperança só pode ascender e acender da luta do povo. Luta que diuturnamente vem sendo travada pelos povos indígenas, camponeses, operários, cientistas, estudantes e juventude contra a pavimentação da BR-319, construção da Ferrogrão e exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas e outros “empreendimentos”. A preservação do meio ambiente no Brasil é uma completa falácia dentro dessa lógica latifundista que reina no país, que como vimos, impede de todas as formas uma preservação verdadeira do meio ambiente. A única forma de se mudar esse cenário, é com a mobilização e organização das massas camponesas, para a destruição de toda estrutura econômica e da fundação de uma nova superestrutura política do país, por meio da construção de uma revolução que vá ao fundo nos problemas da nação e os resolvam, que derrube o sistema podre da opressão, exploração e destruição da natureza.
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¹Ao final do governo de Bolsonaro, o Brasil somava 693 mil mortes pela COVID-19.
⁵Cujo dono é o latifundiário e ex-ministro da agricultura de Michel Temer, Blairo Maggi, chamado de “rei da soja”.