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A cultura e o povo: cinema

O cinema chega ao Brasil quase instantaneamente à sua invenção, resultado de uma série de avanços tecnológicos no final do século XIX - com sua primeira exibição em dezembro de 1895, pelos irmãos Lumière, em Paris - e forma em pouco tempo um público considerável. Tendo em conta a reprodutibilidade da mídia moderna, caracteristicamente forjada pela era do capital industrial, com o potencial de exibição em massa, e nascente no seio das metrópoles urbanas, o cinema torna-se uma forma de cultura mais acessível ao povo, em especial o proletariado em formação. O curioso é indagar como um país como o Brasil, que estava em um estágio técnico supostamente atrasado, encontra condições para o desenvolvimento do cinema.  Uma análise concreta da construção desse público é o que Pedro Butcher vai desenvolver em seu livro Hollywood e o mercado cinematográfico brasileiro: Princípio(s) de uma hegemonia, provando o intenso trabalho de disputa política dos monopólios de comunicação e os desdobramentos ideológicos na consolidação do cinema brasileiro.


Nas primeiras décadas do cinema brasileiro, o que chegava era o cinema internacional, principalmente estadunidense e europeu. Isso muda com a consolidação da indústria nacional com estúdios como a Cinédia. Não é possível falar da etérea busca pela identidade nacional sem citar a A Semana de Arte Moderna de 1922. Dela, saíram nomes como Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade – esse vindo a escrever “Macunaíma”, a obra literária que mais tarde seria representada nas telas, onde a personagem tem características de um anti-herói, incivilizado aos moldes europeus, mas de uma potência imensurável – e que até hoje é motivo de estranhamento e crítica dos movimentos sociais. Não por menos, se  a formação da identidade nacional tem alguma elaboração em relação a emancipação das amarras do colonizador, da antropofagia, da insubmissão aos de fora, ela nasceu das mãos de uma fração da incipiente burguesia nacional, pois os artistas da semana de 22 pertenciam à uma certa elite cultural, sem maiores vínculos com os trabalhadores, o que só ocorreria com a segunda geração do Modernismo, uma década depois.


 

"Macunaíma" (1969), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade.
"Macunaíma" (1969), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade.

Mas a história do audiovisual no Brasil não é constituída somente por longas metragens, filmes oficiais ou produções internacionais. O imenso acervo de registros disponíveis hoje são verdadeiras joias que fazem a função histórica de materializar períodos decisivos no decorrer da formação da sociedade brasileira. Com a digitalização da película e o advento das mídias digitais, páginas como a do Arquivo Nacional e EMPLASA oferecem uma verdadeira imersão dos mais importantes eventos aos lindamente triviais.  É o caso de “Libertários (1976)”. No filme, é possível ver a chegada de imigrantes europeus que formariam o corpo desse proletariado incipiente relacionado ao processo de industrialização citado acima, marcando um processo violento de exclusão dos povos originários e negros recém-libertos dos postos de trabalho e do que representava a “nova face” nacional que se queria moderna. Nesses registros, feitos por patrões, é possível ver o potencial da nascente indústria nacional, como o nível de exploração dos trabalhadores que, mesmo empregados, viviam muito abaixo dos níveis adequados, com horas de trabalho extenuantes e sem nenhuma legislação trabalhista que os apoiasse.  As efusivas lutas das classes trabalhadoras também são representadas, extremamente politizadas e ligadas à luta internacionalista e ao movimento anarquista.


Libertários (1976). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yBysX6-7ezw  
Libertários (1976). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yBysX6-7ezw  

Outro registro é sobre a formação da favela da Rocinha. Já no contexto dos anos setenta/oitenta, com não só a superação dos ciclos de nacional-desenvolvimentismo como com o país entrando em outra dinâmica de acumulação econômica, de caráter financista , e depois de ter enfrentado um longo processo de ditadura – processo esse que também ficou conhecido por suas grandes empreitadas, obras e continuidade à suposta fase de modernização – é possível ver as contradições resultantes dos anos de concentração de riqueza (problema apontado por Marx como tendência de toda tentativa de expansão capitalista) como o aumento vertiginoso da população urbana, problemas de moradia, segurança, saneamento, além da formação de uma massa estrutural de desempregados, isto é, pessoas que jamais acessariam o mercado de trabalho formal e que passam a prover a vida do modo que ficou conhecido como “viração”. Outro elemento perceptível é o exemplo da consciência empírica de classe. É possível ver as pessoas relatando ser preferível morar em um lugar sem condições de habitação ao invés de perder ainda mais horas de vida no trajeto para o trabalho, ou em um trecho em que o morador diz que “O favelado já é um sacrificado na vida, e muitas vezes o seu sacrifício se estende até para a segurança nacional… o favelado contribui com seus filhos para a segurança da nação, mas ele mesmo não tem uma vida segura” (15:50 minutos).


Rocinha (1977). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L4CyLla6WWk
Rocinha (1977). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L4CyLla6WWk

 

Hoje, podemos falar de diversos nichos de cinema contestatório. É o caso em alguma medida do crítico Cinema Novo, do cinema indígena e do cinema negro. Esse último não nasce como um gênero, mas um posicionamento político e estético – surge como reivindicação de autoria negra, ou seja, filmes feitos por e para pessoas negras – rompendo com a figuração da pessoa negra apenas como objeto exótico, criminoso, marginal, serviçal. Em Ex-Pajé, Bodansky mostra as consequências cruéis da alienação dos povos originários de seus espaços de vivência, cultura e manifestações espirituais, tudo pela compulsão inescapável e violenta de englobá-los a sociedade da mercadoria.


Ex-Pajé (2018), dirigido por Luiz Bolognesi.
Ex-Pajé (2018), dirigido por Luiz Bolognesi.

Por fim, é indiscutível a importância de políticas de fomento à produção e acesso ao cinema e à cultura como um todo. As leis de Cotas de Tela (Decreto-Lei nº 1.922/1939) direcionada a exibição de filmes nacionais, lei de Meia-Entrada (Lei nº 12.933/2013) que estabelece uma fração de ingressos para grupos sociais específicos, Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991) usada para projetos com interesse educativo, histórico ou social são alguns exemplos, embora todas sujeitas a distorções que são imanentes ao próprio processo político em um Estado capitalista. Por isso mesmo, é preciso dizer que a indústria cinematográfica é extremamente restrita dado o seu aparato técnico de capital altamente intensivo, custoso, e que segue monopolizado pelas classes dominantes e pela elite cultural, o que se agrava ainda mais se levarmos em conta o crônico problema da distribuição. Isso implica na escolha das histórias que serão contadas e que efetivamente alcançarão o público, impossibilitando a expressão da cultura popular diversificada. O povo precisa estar em uma relação dialética entre a produção e a fruição da arte, utilizando-a –assim como as classes dominantes sempre fizeram – como aparato de transformação ideológico, como meio de disputa de consciências, a serviço da transformação revolucionária do mundo que é projetado nas telas.


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Referências bibliográficas:


BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. 1936. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/benjamin/1936/mes/obra-arte.htm. Acesso em: 28 maio 2025.


SAFATLE, Vladimir. A construção estética do Brasil e seus colapsos: crítica, impasse e modernismos nacionais. Constelaciones. Revista de Teoría Crítica, n. 15, 2023. Disponível em: https://constelaciones-rtc.net/article/view/5275. Acesso em: 28 maio 2025.


BUTHCER, P. Hollywood e o mercado cinematográfico brasileiro: Princípio(s) de uma

hegemonia. Tese de doutorado defendida no PPGCINE-UFF. Niterói, 2019. https://ppgcine.cinemauff.com.br/wp-content/uploads/2019/12/Tese_Pedro-Butcher_ARQUIVO-FINAL.pdf. Acesso em: 28 maio 2025.

 

TAVARES, Julia de Almeida Maciel Levy; MALTA, Maria Mello de; CORRÊA, Eloah Oliveira; BARBOSA, Leila Almeida. Colaborações cinematográficas para ampliação do entendimento sobre a formação do Estado e da nação brasileira. Revista Scriptorium Históricum, v. 7, n. 2, p. 34–54, 2023. Disponível em: https://revistas.hcte.ufrj.br/index.php/RevistaSH/article/view/327/238. Acesso em: 28 maio 2025.

 

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