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Crise mundial: algumas certezas em meio às incertezas

Atualizado: 12 de abr.

Numa das suas “Cartas sobre a tática”, de meados de 1917, Lênin dá uma orientação valiosa aos seus camaradas, ao dizer que a elaboração política de um partido, ainda mais em situações de grandes e rápidas mudanças, não deve se ocupar do possível e sim do real. Com efeito, seria tolo pretender alcançar uma previsão detalhada para o desenlace da atual guerra tarifária promovida por Trump e até aqui bancada pela China (na verdade, é uma renhida disputa por esferas de influência travestida de guerra tarifária), pois estamos diante de uma situação não só de grande complexidade mas também de ineditismo, pois jamais antes a economia capitalista mundial havia vivenciado um entrelaçamento tão grande entre as duas principais economias globais bem como o divórcio litigioso entre elas.

Por isso, nos parece necessário, em meio ao impressionismo causado pelas manchetes grandiloquentes, sentar algumas conclusões que nos parecem seguras, do ponto de vista da nossa classe e do marxismo, sobre o atual estado de coisas – posto que, naturalmente, os sujeitos que escrevem aquelas manchetes o fazem do ponto de vista da defesa da ordem vigente e é o seu abalo o que os preocupa acima de tudo. Não poderíamos, estando comprometidos, ao contrário, com a destruição completa do capitalismo imperialista, apenas repeti-los na sua histeria e saudosismo da velha rotina desaparecida.

A situação mundial parece caminhar para um brusco redesenho econômico e político nos próximos anos, redesenho que não resultará sob hipótese alguma na restauração de um status quo anterior ao começo do século XX, como quer Donald Trump (ele afirmou, reiteradamente, que a época mais progressista dos Estados Unidos se deu entre 1870-1913: tal retorno é a sua utopia). A história avança a sobressaltos, conhece soluções de continuidade e regressões, mas mesmo a regressão não recoloca os velhos atores nos mesmos velhos lugares: é por isso que Marx, como troça, dizia que ela se repete apenas como farsa, o que significa que de fato ela jamais se repete. Esta é a primeira certeza implacável, que condena de largada o reacionarismo econômico, político e ideológico de Trump e da religião que ele parece ter fundado ao seu redor.

A questão é que este reacionarismo e isolacionismo de Trump não constitui uma causa de si mesmo, mas necessita ele próprio ser explicado. Num livro chamado “Adam Smith em Pequim”, no qual historia a lenta crise hegemônica norte-americana a partir da Guerra do Vietnã e do choque do petróleo, e a igualmente lenta emergência econômica chinesa no mesmo período, o pesquisador Giovanni Arrighi define a situação do imperialismo norte-americano no fim da primeira década deste século, após os fracassos das agressões ao Afeganistão e ao Iraque, como de “dominação sem hegemonia”. Ou seja, um cenário, típico de épocas de decadência, em que a pura imposição da força busca prolongar artificialmente uma supremacia que já não existe no plano econômico. Na verdade, a própria condição monopolista norte-americana, reforçada com o estatuto do dólar como moeda mundial, explica a perda de produtividade de sua indústria e a transformação da sua economia em mera “recortadora de cupom” –ou num “cartão de crédito gigante”, segundo disse recentemente um financista –, com a transferência de grande parte do seu parque industrial para a China revisionista e outros países asiáticos. Ao bloquear ou restringir as importações, Trump degradará as condições de realização do lucro de vastos setores do próprio capitalismo ianque instalados no exterior, encarecerá custos de produção internos e com isso agravará a sua desvantagem competitiva, de que o Deepseek, empresa de Inteligência Artificial chinesa, é exemplo por demais eloquente:  enquanto o Chat GPT custa 700 mil dólares por dia para ser mantido, contando com vultosos investimentos públicos e privados norte-americanos, o seu concorrente custa apenas 87 mil dólares, ou seja, quase dez vezes menos. Com isso, chegamos a uma segunda conclusão importante, qual seja, a de que medidas no campo meramente tarifário não poderão sob nenhuma hipótese reverter uma degradação estrutural da economia ianque, derivada do seu caráter parasitário, restando-lhe apenas a chantagem e o uso efetivo da força, contra os países mais fracos e através de uma série de guerras por procuração, primeiro; numa escala mais abrangente contra seus principais contendentes diretos, depois.

Mao dizia, resumindo uma longa tradição marxista, que a política é a expressão concentrada da economia. Assim sendo, estas brutais guerras tarifárias não poderão deixar de se manifestar –e, se olhamos a guerra na Ucrânia, o rearmamento alemão, a partilha da Síria, o holocausto de Gaza e o incentivo ianque às provocações sionistas contra o Irã, isto já é uma realidade – em renhidas disputas armadas pela hegemonia mundial. Quando Trump fala abertamente na anexação de territórios, como o Canadá, a Groenlândia e a própria Faixa de Gaza, ele deixa claro que o domínio territorial é atualmente tão crucial para o imperialismo norte-americano decadente como fora para o colonialismo europeu decadente em meados do século passado. Na verdade, ao contrário de uma leitura economicista vulgar, devemos ver que sem o controle político não pode haver controle econômico, razão pela qual essa disputa sino-norte-americana pela hegemonia mundial (o que inclui outros atores como a Rússia, França, Turquia, cada qual lutando por seus próprios interesses), também tem se expressado numa sucessão de golpes militares e guerras civis sobretudo na Ásia e na África, manifestações locais de contendas globais.

No interior dos países imperialistas, sobretudo na Europa, a tendência política alimentada pela reação às provocações de Trump será a do recrudescimento do chauvinismo e de um populismo nativista, protecionista, e mesmo das correntes abertamente nazi-fascistas, no que há uma similitude com o visto durante a Covid, inclusive com a onda inflacionária que parece estar a caminho: uma opositora universal de qualquer governo de turno, seja qual seja a sua legenda. Em suma, as correntes centristas e reformistas terão ainda menos margens de manobra num futuro próximo (no caso brasileiro, que não é objeto deste artigo, isto é algo mais complexo, porque a identidade de Bolsonaro e da extrema-direita com Trump, se explorada pelo atual governo, inclusive na sua tentativa de atrair o chamado agronegócio para sua base eleitoral, pode até enfraquecer o bolsonarismo para as próximas eleições, por mais paradoxal que isto pareça). Um agravamento do chauvinismo, das guerras por procuração, da corrida armamentista, o rearranjo das alianças táticas entre uma série de países, que apontam como conjunto a uma nova guerra mundial: esta é seguramente uma outra certeza da situação atual.

No campo popular à reação externa de Trump tem equivalido uma reedição do macartismo no plano interno. Pessoas sequestradas nas ruas, alunos expulsos de universidades por se manifestarem, cortes de verbas associados ao controle da produção acadêmica (ou seja, censura), vizinhos denunciando vizinhos para a imigração. Como já dissemos anteriormente, os milhões que tomaram as ruas para repudiar o assassinato de George Floyd, bem como para defender a heroica resistência palestina, não saíram de cena. Embora acuadas no início desta avassaladora onda chauvinista, estas pessoas reocuparão as ruas pouco a pouco (na verdade, já as têm reocupado), à medida que se aprofundem as fissuras no interior da frente reacionária que sustenta o governo. Do mesmo modo como Trump não pode redesenhar o jogo econômico-político mundial sem agredir os órgãos multilaterais vigentes (expressão jurídica da própria hegemonia ianque, em um outro momento histórico), também não pode aplicar seu plano messiânico de “grande retorno” sem destruir as liberdades democráticas e a institucionalidade interna, inclusive com a já anunciada intenção de disputar um novo mandato. Engana-se quem aposta que os deletérios efeitos econômicos sobre os consumidores norte-americanos podem derreter rapidamente a base social de Trump: para inverter a velha expressão, esta solda-se não com economia, mas com ideologia, “estúpido”! Inclusive, uma alternativa sempre presente para contrarrestar uma erosão interna é precipitar crises e guerras externas. Seja como for, as ruas dos Estados Unidos estremecerão, o que também incentivará as mobilizações pelo mundo afora. Nos países oprimidos, o orgulho patriótico e anti-imperialista também tende a ser um combustível para as lutas populares e revolucionárias, embora apresente às forças proletárias a necessidade e a dificuldade de se diferenciarem do nacionalismo burguês.

Neste contexto, os problemas do agrupamento das forças revolucionárias consequentes (no plano nacional e internacional), bem como da constituição de poderosas frentes de denúncia das guerras de agressão imperialistas, adquirem uma enorme importância. Se o militarismo, racismo e chauvinismo são o prelúdio desta próxima guerra mundial reacionária, a agudização entre as massas populares do sentimento anti-imperialista, patriótico e em defesa das garantias econômicas, políticas e sociais ameaçadas são por sua vez o prelúdio do novo auge revolucionário vindouro, cuja emergência se entrelaça com o amadurecimento daquela guerra, à semelhança do que se viu às vésperas da I Guerra Mundial (quando não havia, como hoje, nenhum Estado socialista). Esta é uma outra certeza inexorável e a que mais nos interessa, no final das contas.



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