Iguais perante a lei?
- Igor Mendes

- há 16 minutos
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A derrota de uma facção específica – a família Bolsonaro – não se confunde com o desaparecimento das condições que propiciaram a sua ascensão e quase vitória. Estas, na verdade, existem tanto aqui como no mundo. Se o golpismo militar pareceu demasiadamente intragável para a Faria Lima e os humanistas de ocasião dos monopólios de comunicação, é possível que vejamos uma radicalização de um populismo civil de extrema-direita nos próximos anos, que emule figuras mais palatáveis do que um Jair Bolsonaro.
Com o trânsito em julgado do processo que condenou o chamado núcleo crucial da tentativa de golpe de Estado em 2022, Bolsonaro, os generais Augusto Heleno, Paulo Sergio Nogueira e outros figurões das forças armadas e polícias, como o ex-ministro da Justiça e delegado da Polícia Federal, Anderson Torres, passam a cumprir pena. Este fato, realmente inédito, diz mais sobre a brutal desigualdade do sistema jurídico brasileiro do que sobre a pretensa “solidez” das suas instituições.
Com efeito, de um lado, a amplitude da trama e o nível de envolvimento inclusive de setores da cúpula do aparato repressivo mostram que estivemos por um fio da quartelada; o voto de Luiz Fux e os palpites de Marco Aurélio Mello mostram que não faltariam canetas dispostas a dar justificativa jurídica à sedição, decerto, segundo uma leitura do ambíguo artigo 142. De outro lado, já começam a aparecer na imprensa comoventes relatos sobre a “fragilidade” de saúde dos réus e o caráter humanitário da conversão da sua prisão em regime domiciliar. Argumento que não vale, nem nunca valeu, para os oitocentos mil miseráveis que estão largados nas masmorras penitenciárias, quase a metade deles, em caráter provisório. Anderson Torres, por exemplo, iniciou o cumprimento da sua prisão em um anexo do Complexo da Papuda, onde vive solitário em um espaço com 55m², que é maior do que 85% dos apartamentos lançados em São Paulo neste ano. Ele conta, inclusive, com ar-condicionado e pátio externo. Enquanto isso, a poucos metros, os reles “cidadãos comuns” encarcerados no sistema enfrentam grave superlotação: atualmente, a Papuda possui 8.072 vagas e abriga 14.173 custodiados, ou seja, 75% a mais que sua capacidade.
Se, em liberdade, tempo é dinheiro, atrás das grades espaço é poder. Ou, adaptando passagem tantas vezes citada, podemos dizer que nossa triste república oligárquica-semifeudal é o regime onde todos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais do que outros.
Outra ilusão que se deve dissipar é de que passou o perigo do golpismo fascista. Como vimos recentemente na chacina promovida por Cláudio Castro com o incentivo no mínimo ideológico dos conselheiros de extrema-direita israelo-norte-americanos, que se agrupam em seus cada vez mais estruturados fóruns internacionais , há um certo fascismo que é endêmico em sociedades tão brutalmente polarizadas (polarizadas economicamente, não no sentido político vulgar atualmente em moda), isto é, com enorme concentração de riquezas, como a nossa. A derrota de uma facção específica a família Bolsonaro não se confunde com o desaparecimento das condições que propiciaram a sua ascensão e quase vitória. Estas, na verdade, existem tanto aqui como no mundo. Caminhamos, talvez, para o aprofundamento de um regime de segregação, em que áreas relativamente seguras e com níveis tolerados de dissensão política conviverão com territórios de exceção controlados por grupos paramilitares e acossados por toda sorte de represália estatal, seja na forma de desassistência, seja na forma de repressão direta. Se o golpismo militar pareceu demasiadamente intragável para a Faria Lima e os humanistas de ocasião dos monopólios de comunicação, é possível que vejamos uma radicalização de um populismo civil de extrema-direita nos próximos anos, que emule figuras mais palatáveis do que um Jair Bolsonaro. Tarcísio de Freitas, aliás, já acumula seguidas declarações de admiração a Nayib Bukele Javier Milei, os facínoras com trejeitos de popstars que presidem El Salvador e Argentina, respectivamente.
De outro lado, o próprio sistema político consagrado pela Constituição de 88, com seu sistema eleitoral caro, burocratizado e fortemente vinculado aos caciques regionais eterniza um Congresso Nacional avesso a qualquer demanda popular. O “centrão”, este amálgama de anacronismos rurais com novos ilegalismos do capitalismo contemporâneo, é situação qualquer que seja o governo, e chega a ser louvado por alguns como “contenção” a qualquer mudança estrutural à direita ou à esquerda. Ele, na verdade, é uma âncora da direita, a salvaguarda dos interesses mais nucleares das classes dominantes sob qualquer administração. Sua briga com o Executivo e o Judiciário pelo controle das verbas e da agenda política se torna convergência quando se tratam de atacar os direitos trabalhistas e sociais mais básicos. Vige aí, a pleno vapor, quase ao fim do terceiro mandato presidencial de Lula, as contrarreformas trabalhista e previdenciária aprovadas por Temer e Bolsonaro, que o PT na oposição jurou de pés juntos revogar.
Não há saída para o nosso povo que não seja sua mobilização e organização crescentes. É preciso levantar o espírito de luta dos trabalhadores e da juventude, de forma a mais capilarizada possível, isto é, no chão dos locais de moradia, estudo e trabalho. Com a corrupção e cooptação que assassinou as velhas organizações sindicais e partidárias, convertidas, no caso de maior eficiência, em meras burocracias eleitorais, urge fazer o caminho inverso e estruturar um projeto de poder popular ancorado desde o princípio na mobilização independente das massas trabalhadoras, em consonância com as grandes viragens históricas que despontam no cenário mundial. É um caminho árduo e cheio de perigos, altos e baixos, mas é um caminho seguro, porque o único acertado, comprovado por toda a experiência do proletariado revolucionário. Em marcha!






