Operária perde filhos por crime de omissão de multinacional da indústria alimentícia
- Redação
- há 6 horas
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Trabalhadora de um dos frigoríficos da empresa que estava grávida entrou em trabalho de parto e empresa recusou auxílio; hoje seus filhos ganharam preço pela justiça
Em abril de 2024, uma trabalhadora de um frigorífico em Lucas do Rio Verde, Mato Grosso, entrou em trabalho de parto na frente do seu local de trabalho, sem auxilio médico, após a empresa MBRF (antiga BRF, oligopólio da indústria de alimentos) ter negligenciado todos seus direitos. A empresa negou o direito de dispensa da operária, com 8 meses de gestação, após a mesma relatar sintomas que indicavam que estaria entrando em trabalho de parto. Suas duas filhas morreram na calçada de onde fica o prédio do frigorífico, enquanto esperava com urgência o transporte. Ao que tudo indica, a operária estava sozinha. Este caso não é só um crime, mas um sintoma da negligência completa aos direitos das trabalhadoras de nosso país.
A trabalhadora era uma mulher negra, de 32 anos, imigrante da Venezuela, trabalhava no setor de evisceração de aves com jornada de 10 horas diárias. Após o crime cometido pela empresa, com conivência do alto escalão de funcionários corrompido, ela se demitiu.
Depois de mais de um ano, o 23º Tribunal Regional do Trabalho da região condenou a empresa ao pagamento de indenização no valor de 150 mil reais por “danos morais”. Isto é quanto o TRT deliberou que lhe custava a perda de suas duas filhas. Importante apontar que a ação pedia originalmente R$606.986¹.
A multinacional, que está presente em 117 países e possui uma receita anual de 152 bilhões de reais, enfrentou em março de 2017 uma operação chamada Weak Meat, que investigou a corrupção de algumas empresas alimentícias no que se refere a questão da qualidade do produto. A MBRF chegou denunciada por algumas irregularidades incluindo a venda de carne estragada.
Outra trabalhadora do mesmo frigorífico fez denúncia similar em 2019, da qual após solicitar redução de algumas atividades por conta da gravidez (direito previsto por lei no Brasil) foi negligenciada e ainda humilhada pelo supervisor do setor que trabalhava². Apesar de muitas notícias focarem na ação do supervisor do frigorífico, ou mesmo neste específico frigorífico, as denúncias contra a empresa MBRF não são de hoje. A Sadia e Perdigão (marcas da empresa) já foi condenada ao pagamento de R$1 milhão em indenização por manter trabalhadores em “condições análogas à escravidão” em Iporã, no Paraná³.
O frigorífico, querendo se livrar dos crimes que cometeu e que dessa vez vieram à tona, alega que o parto e a consequente morte das crianças não ocorreu dentro das dependências do local de trabalho. Apesar da alegação absurda, é preciso esclarecer quais as condições que esta e milhares de mulheres e homens são sujeitos a trabalhar para enriquecer os gordos bolsos dos acionistas, um deles o bilionário Marcos Molina⁴.
Os acidentes de trabalho em frigoríficos e a legislação de “proteção” à gestação
Os chamados “acidentes de trabalho” em frigoríficos, longe de serem acidentais ou coincidências, têm um dos mais altos índices de problemas físicos e mentais causados pela especificidade do trabalho em comparação a outros setores.
O mercado de trabalho do setor de frigorífico emprega cerca de 750 mil pessoas por ano, sendo 500 mil destas no setor de aves e suínos. O trabalho com carne bovina tem alto índice de traumatismo na cabeça, abdômen, ombro e braço. Para trabalho com abate de aves, a chance de desenvolver depressão é 3x maior, além do risco de sofrer uma lesão no punho e nos braços ser de 700%⁵.
Os trabalhadores das indústrias de aves, como é o caso da operária que perdeu seus filhos, desossam no mínimo 4 coxas de frangos por minuto. Ou seja, são em média 15 segundos por coxa desossada. Segundo o documentário “Carne, Osso”, produzido pelo Reporter Brasil e que investiga as condições de trabalho dentro dos frigoríficos brasileiros, um trabalhador precisa executar cerca de 18 movimentos de corte para cada perna de frango cortada em 15 segundos⁶. É menos de 1 segundo por movimento.
Há ainda uma pressão exercida nos trabalhadores por produção. Trabalhadores relatam excessivas cobranças dos fiscais e que o serviço envolve muita pressão, não apenas por cobranças, mas também por condições de trabalho que impediam ida ao banheiro e cumprimento integral do horário de almoço.
Ao mesmo tempo que eu sentia dor, eu sabia que tinha que trabalhar [relato de um trabalhador de frigorífico no Brasil]
Segundo uma pesquisa intitulada “Perfil dos trabalhadores de um frigorífico de aves, e suas queixas osteomusculares e compatibilidade ergonômica”⁷, da UEMG, que analisa o perfil dos trabalhadores no sudoeste de Minas Gerais, cerca de 83% são do sexo feminino. Uma pesquisa que visava identificar o perfil dos trabalhadores de frigorífico no Sul do Brasil também constata a predominância feminina neste setor sendo de 60%. Além de toda jornada de trabalho extenuante que essas operárias sofrem neste setor, e dos possíveis transtornos mentais que estas jornadas causam, existe ainda as chamadas “atividades extra laboriais” (entenda-se: trabalho doméstico), realizadas sobretudo pelas mulheres.
A legislação brasileira supostamente assegura alguns direitos, que como podemos ver neste caso foram completamente ignorados. Primeiro, a legislação brasileira assegura a possibilidade da gestante sentar durante longos períodos de trabalho, o que é pouco comum no setor de corte de aves e suínos. Além disso, existe o direito de mudança de função enquanto há gestação e a conhecida “Licença maternidade”, que são 120 dias de folgas remuneradas, em geral exercida nos últimos meses da gestação. Também há o direito a afastamento em condições específicas, que pode ser requerido a partir do 28º dia de gravidez. No artigo 394/2023, também é estipulado que “as empresas devem garantir que as condições de trabalho não coloquem em risco a saúde da mãe e do bebê, adaptando o ambiente de trabalho conforme necessário”. Certamente o texto jurídico não corresponde à realidade.
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¹ https://primeirapagina.com.br/justica/sem-socorro-venezuelana-da-a-luz-em-frigorifico-e-perde-gemeas
⁴ O bilionário Marcos Molina tem sua fortuna estimada em R$3,6 bilhões de reais.